sábado, 18 de dezembro de 2010

ADELAIDE, COM Y NO FINAL.

                Cinco minutos para escrever a dor grande que sentia. Era o tempo que restava de bateria em seu computador de mão, naquela tarde esquisita, naquela tarde sem cigarras.

 

- Um café, por favor.

- Alguma preferência?

- Café com leite, menos leite que café, e adoçante no lugar do açúcar. A vida com adoçante é demasiado amarga.

 

                A garçonete riu daquela rabugice e foi preparar o café. “Agora me restam quatro minutos para dizer tudo que tenho para dizer”, pensou o poeta. Não sabia por onde começar, então começou pelo final: fim.

                O café chegou.

 

- Mais alguma coisa, senhor?

- Sim. Outro café.

                A garçonete repetiu o discurso anterior:

                - Alguma preferência?

- Sim. Café com leite, menos leite do que café e açúcar ao invés de adoçante. A vida com adoçante é demasiado amarga.

 

                A garçonete riu de novo e se dirigiu à máquina de café. O poeta continuava sem saber por onde começar. Prosseguiu de trás para frente: e depois de tudo isto, virá o fim.

                O outro café chegou.

 

- Mais alguma coisa, senhor?

- Sim, outro café.

- Alguma preferência, senhor?

- Café com leite, menos leite do que café, e açúcar ao invés de adoçante, pois a vida com adoçante é demasiado amarga.

- Rapidinho fica pronto, senhor.

                A garçonete não riu. Foi até a máquina, preparou o café e retornou.

- Mais alguma coisa, senhor?

- Sim. Um café puro, um copo de leite e o açucareiro. Deixa que o resto eu mesmo faço.

- Além disso, posso ajudar em mais alguma coisa?

- Já ajudou. Eu estava sem ideias para um novo texto, mas já sei sobre o que escrever.

 

Muito obrigado.

 

- A garçonete caminhou até o balcão, sem entender o que se passava.

- Garçonete, qual seu nome?

- Adelaide, senhor, com y no final.

- Adelaidy?

- Se pronuncia Adelaide, mas se escreve Adelaidy.

- Onde estão as coisas que pedi, Adelaidy?

- Estou indo senhor.

- Cadê o açúcar?

- Não temos açúcar, senhor.

- ...

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

NASCEU

- Alô, tudo bom, amigão?

- Fale guerreiro. E aí, nasceu?

- Nasceu.

- E o que é?

- É gente.

- Como assim, gente?

- Gente, ser humano, etc.

- Gente eu sei que é, estou perguntando se é mulher ou homem.

- Nenhum dos dois.

- Hã?

- É uma menina.

- Ah, então é mulher.

- Mulher não: menina. Mulher será quando for adulta.

- Não vejo a hora da minha mulher ganhar também.

- Ganhar o que?

- Ganhar nossa criança.

- Você quer dizer parir, não é?

- Parir é coisa de vaca, de bicho. Minha esposa vai ganhar neném.

- Ah... então alguém vai dar um neném pra ela, é isso?

- Não, ora. Todos iremos para a sala de parto, onde...

- Opa, espera, pára tudo, puxa o freio de mão! Você disse sala de parto?

- Isso.

- E parto está relacionado com que verbo?

- Parir.

- Exato, parir!

- Olha, guerreiro, nunca parei para pensar nisso.

- Quase ninguém pensa.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

DIAPASÃO

Nascido no dia dos poemas proibidos,

Meu amor por ti é uma vírgula esquisita:

                                                                 Não aponta

                                                                 Para o final.

É sempre esta constância, linha reta.

O meu amor por ti me mantém afinado.

domingo, 21 de novembro de 2010

QUARENTA E SETE SEGUNDOS

- Alô, quem fala?

- Oi, sou eu. Você me conheceu hoje na fila da farmácia.

- Oiiiiiiii, tudo bom?

- Tudo bom sim. Melhor agora que estou falando com você. Quando nos veremos de novo?

- Ah, marca um dia aí.

- Hoje?

- Hoje não dá, o marido da minha amiga viajou e ela separou umas comédias românticas para assistirmos juntas durante a noite.

- E amanhã?

- Amanhã eu tenho curso de espanhol.

- E depois de amanhã?

- Não dá também. Tenho igreja.

- No dia após a igreja, fechado?

- Vixe, também não vai dar.

- Estará fazendo o que?

- Nem sei.

- Então você não pode me encontrar porque terá um compromisso que nem sabe qual?

- É.

- E por que me pediu para escolher o dia?

- Por educação. Não queria te magoar.

- Ah, tá. Obrigado pela sensibilidade. A propósito, de que tipo de música você gosta?

- Qualquer uma que faça sucesso.

- Pode me dar um exemplo?

- Não sei, escolhe aí.

- ...

 

Duração da chamada: 47 segundos.

Atelliê. Fotografia Criativa

Minha 1ª invasão. Já que não sou boa com textos, vamos ás imagens.!
"Fotografo aquilo que não tenho vontade de desenhar. Aquilo que tem uma essência própria. Essência essa que só a fotografia consegue capturar."


Se é verdade que uma imagem vale mais que mil palavras, o blog Atelliê Fotografia Criativa está aí pra provar. Usando criatividade (óbvio) e valorizando coisas simples como um passeio de bicicleta, a vista da janela, um banho no rio. Além de fotografias mais elaboradas que despertam a nossa imaginação, algumas nossos medos, outras curiosidade, enfim, emoções. Também expõem trabalhos de outros fotógrafos, dão várias dicas e news.































































Essa eu particulamente adoro.
Que bom seria poder fotografar os pensamentos.!




DOIS PONTO ZERO

- Comadre, estou tão feliz!

- Por que?

- O professor disse que meu filho é muito bom em matemática!

- Sério?

- Nas palavras dele: “seu filho até parece um computadorzinho”.

- Mas que gracinha!

- O único problema é que ele não tem iniciativa. Sempre espera que uma nova atividade lhe seja designada.

- Que fofo! Muito diferente dos desordeiros que vemos por aí.

- Ele é tudo o que uma mãe gostaria de ter. Nunca me desobedece. Às vezes meio que fica paralisado, mas isso é da natureza dele. Basta dar uma sacudidinha que ele volta ao normal.

- Igual a um computadorzinho!

- Como minha sogra diz, “é uma versão melhorada do pai”. É muito controlado com suas emoções. Jamais o vi com raiva ou tristeza. Até parece não possuí-las.

- Igual a um computadorzinho!

- É, igual a um computadorzinho.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Xeque-Mate
O abrir e fechar das portas
Chega a ser engraçado
O quando pode sangrar um coração
Passado, já foi
Agora há a juventude posta diante dos teus olhos
O brilho, e o fogo
E agora tudo recomeça
Eu sinto estar voltando á razão
Recuperando os pedaços que se foram
Pondo novos e com proteção anti-amor
É meio louco
Tem muita luz da lua nos teus olhos
E isso faz os meus acenderem
E procurarem uma forma de te achar
E te amar
O escudo falhou
Novamente AMANDO
Não sei se a mesma pessoa
Mais novamente amando
Porque os espaços foram repostos
E novo em folha, um coração que fora quebrado
E estraçalhado
Mais agora, voltara a ser novo
De alguma forma
Ou por algum alguém
Mais ele voltou a bater
E eu pude voltar a respirar
Perdão,
Eu fui melancólica durante décadas
Durante a minha velhice
E agora durante a minha juventude
O passado e o presente misturados
Em uma trama
Na qual o amor nao é a opção final
Agora, façam suas apostas
E dêem um Xeque-Mate (:

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Expressão, arte, movimento

Uma sensação, como se estivesse no céu

Cada movimento

Respiro bem fundo, sinto a dor nas minhas articulações

(Tem que sentir para saber que está fazendo certo)

Passos, passos e mais passos

Surge então não só movimentos

Mas dança!

Se sentir livre, é se sentir bem

Não importa qual o ritmo

Ter a liberdade de se expressar

Reconhecer que errou

Fazer tudo de novo

Cada suor derramado é o preço de algo bem feito

Quando começo a dana aprender, desejo saber mais ainda

Quando danço, sinto-me aliviada

Respiro fundo

Danço e nada mais

Não é preciso de música

Só danço, mostro quem sou eu

Dançar é um modo de expressão

Só danço...

A dança me inspira

Acalma-me

Não importa o depois, só o agora

Viver, aprender, dançar

Respire fundo, bem fundo...

Apenas dance!!!

Nine Lives
Nove Vidas
Eu poderei viver assim?
Nove Vidas
Presas dentro de uma só!
Nove Vidas
São angustiantes os sonhos
Que logo desabam
Nove Vidas
Elas são misteriosas
E apenas o número NOVE reina
E o restante?
Apenas Nove Vidas
Pulsando e pedindo atenção
Nove Vidas
Você jamais saberá o que irá encontrar
Nove Vidas
Elas se misturam entre lágrimas
Risos e frustrações
Mais são apenas Nove Vidas
Nove (apenas)
Vidas (a cada momento se perdem)
Nove (é um meio de se descobrir)
Vidas (elas passam sem ninguem perceber)
Nove (o meu número predileto)
Vidas (escorrem por entre nossos dedos)
Apenas Nove e Dez vidas são o começo das outras...

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Garotas procuram

E eu poderia odiar alguém assim?

Que sabe do que eu preciso

Olha-me fundo nos olhos

Que diz que me ama

Abre a porta do carro para eu poder entrar

Um típico romântico

Abraço apertado

É bom se sentir amada

É se sentir querida

Precisamos de mais amor

Queremos mais cavalheirismo

E eu sei que em algum lugar existe um lorde, simples, engraçado, inteligente,

Romântico

Cadê estes homens!!!

Eu sei que ninguém é perfeito, mas podemos tentar

Paciência é uma virtude

Eu quero alguém assim...

domingo, 7 de novembro de 2010

TATÁ

            O poeta estava, de certa forma, aliviado. Havia tirado o gesso naquela quarta-feira. Jogou-se embaixo do chuveiro demoradamente, e não conseguia pensar em nada além da água que interrompia os dois penosos meses de aridez em seu corpo debilitado. Perdeu a noção do tempo. A única música que ouvia era a da água. Só ouvia a água.

            Dolorosa e vagarosamente, mudava de pele tal uma cobra branca, na má consciência de que a imortalidade não é privilégio seu. Se fosse um gato, restar-lhe-iam apenas mais cinco vidas, e a prova disto eram os restos de seu antigo eu a descerem pelo infinito do ralo de plástico encardido. Estava retomando a posse de seu corpo.

            Pegou carona com um amigo e foi até a clínica de fisioterapia, a fim de dar início a seu processo de reabilitação. Passou pela avaliação médica sem mais problemas. Tudo objetivo, como deveria ser. No dia seguinte começariam as sessões fisioterápicas, mais especificamente no fim da tarde. Estava definitivamente retomando a posse de seu corpo.

            Foi de táxi, para não perder a hora. Recepção calorosa da simpática secretária. Sentou-se na cadeira verde, apertando sua bolinha azul, ora com a mão direita, ora com a esquerda.

 

- Foi moto?

- Não, uma caminhonete.

- Bateram na sua caminhonete?

- Não, uma caminhonete bateu em mim.

- Uma caminhonete bateu na sua caminhonete?

- Não, a caminhonete bateu na minha moto, que era, naquele momento, pilotada por mim.

- Ah, então foi moto.

- Não, senhora, foi uma caminhonete. O condutor avançou o sinal e me bateu.

- Mas de qualquer maneira foi moto.

- Não, minha senhora, foi uma caminhonete.

- Quebrou muito?

- Não. Só o punho direito, o cotovelo esquerdo e o dedão do pé esquerdo.

- Doeu?

- Não, senhora, não doeu. Eu, na verdade, quero repetir tudo igualzinho como naquele dia, de tanto que eu gostei.

- Hã?

- Nada não, senhora.

 

            Fingiu atender o celular a fim de evitar o prolongamento da conversa com a senhora, que logo entrou para sua fisioterapia no joelho. Alívio imediato, a paz reinou na recepção. A secretária jogava Zuma Deluxe no computador, na mais absoluta concentração, enquanto o poeta imaginava sobre o que escreveria ao final daquele dia. Em seguida entram uma mãe e seu filhinho que aparentava ter cinco anos, para pedir informações no balcão. A secretária pede que a mãe espere um pouco. A mãe poderia sentar em qualquer uma das nove cadeiras distribuídas em três filas, mas sentou ao lado do poeta.

 

- Foi moto?

- Não, uma caminhonete.

- Nossa, e sua caminhonete tinha seguro?

- Eu não tenho uma caminhonete.

- Mas não foi caminhonete?

- Foi.

- Uma caminhonete bateu no seu carro?

- Não, a caminhonete bateu na minha moto, que, no momento, era pilotada por mim.

- Ah, então foi moto.

- Não, senhora, não foi moto, foi a caminhonete que avançou o sinal e me jogou a alguns metros de distância.

- Quebrou muito?

- Não. Apenas os dois braços e o dedão do pé esquerdo.

- Doeu?

- Não, não doeu. Eu até gostei. Tem uma caminhonete disponível pra bater em mim?

- Hã?

- Nada não.

 

            “Sr. Poeta, é a sua vez, siga-me por favor”. Era uma voz doce, como a voz da Corina do tele-táxi. Ou a voz da Maria, do tele-táxi. Ou da Ruana, também do tele-táxi. Estava mais para a voz da Corina mesmo.

 

- O Sr. pode deixar suas coisas aqui e deitar naquela cama ali.

- Obrigado.

- Foi moto?

- Não, foi uma caminhonete.

- Quase bateram na minha caminhonete também, essa semana. (essa era a fala de um paciente deitado em uma cama lá no fundo da sala)

- Mas eu não tenho uma caminhonete. Uma caminhonete bateu em mim, e eu estava de moto.

- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAH, ENTÃO FOI MOOOTOOOO. (os pacientes e as auxiliares de fisioterapia pareciam haver ensaiado o coro trágico).

- Não foi moto, foi uma caminhonete.

 

            A auxiliar de fisioterapia ostentava um sorriso largo. Parecia ter fugido da imagem estereotipada da mulher. Se ria, ria de verdade, um riso livre, beirando o desdém. Ela, então, aproximou-se do poeta e disse: “hoje vou te fazer gemer, com sensações jamais experimentadas em sua vida”. O poeta empolgou-se com aquela fala.

 

- Antes de começarmos, posso saber seu nome? Você daria uma ótima personagem para um texto meu.

- Tamiris.

- Como se escreve?

- É Tamiris, sem frescura. T-A-M-I-R-I-S. Mas prefiro que me chame de Tatá.

- Tá bom, Tatá. (achou tão musical dizer “tá bom, Tatá, que ficou repetindo em sua mente enquanto a moça arrumava os apetrechos necessários para a fisioterapia).

 

            Ela arrumou seu jaleco sobre a blusa de alcinha, que revelava uma pele morena ao estilo Jorge Amado, e pôs a franja de seus cabelos lisos detrás da orelha esquerda, deixando o lado direito levemente caído sobre o rosto. “Vamos começar, quando doer você me avisa”. “Tudo bem”, respondeu o poeta, demonstrando uma imensa satisfação por estar ali.

            Mas o poeta, que tudo observa, notou que todas as pessoas presentes naquela sala por uns instantes abandonaram suas conversas e se focaram nele e na morena cor de um verão constante. Logo entenderia o porquê.

            Ela alongou seu punho direito fraturado, e a dor foi absurda. Pediu para que ela parasse e ela não parou. “Outro dia uma criança me mordeu o braço todo, mas não larguei. Eu nunca largo.” Passou para o punho esquerdo que, embora não fraturado, esteve imobilizado pelo mesmo gesso do cotovelo. Dor tão intensa quanto. E o silêncio perdurava no ambiente.

            Ela então se voltou para o cotovelo. O poeta não sabia expressar se aquela dor era uma dor de morrer ou de nascer. Agarrou-se no braço da morena.

 

- Me larga, Tatá. Tá doendo. Ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai...

- Só largo se você me largar.

- Então solta primeiro. Solta, Tatá, tá doendo demais... (o poeta já estava suando frio)

- Me solta que eu te solto.

- Você não vai soltar.

- Solta que você vai ver.

 

            O poeta se sentiu frouxo. Se tivesse comido demais ou bebido muita água naquele dia, esvaziaria o seu ser, de uma forma ou de outra. Soltou o braço da morena, que, logo em seguida, soltou o seu.

 

- Não disse que te faria gemer?

- D:

- Agora vamos repetir e você tá liberado.

 

            AVISO: NESTE MOMENTO A HISTÓRIA POSSUI UM LAPSO, DEVIDO AO DESMAIO DO POETA DURANTE A REPETIÇÃO DA SESSÃO FISIOTERÁPICA. O MESMO ACORDOU NA HORA DE LIGAR PARA RUANA E CHAMAR UM TÁXI.

 

            Despediu-se de todos, incluindo de Tatá-doendo (passou a chamá-la assim depois deste dia). Entrou no táxi e pediu para o motorista ajudá-lo com o cinto. Ironicamente, apesar de andar muito de táxi naqueles dias, era a primeira vez que entrava naquele carro com aquele taxista.

 

- Foi moto, foi?

- …

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Vamos rir mais

Deixarem as emoções falarem mais alto

Viver cada minuto como se fosse o último

Vamos trazer da nossa infância, o sorriso perfeito e verdadeiro

Fazer das nossas amizades únicas e exclusivas

Vamos deixar de lado nosso orgulho

Viver a vida e nada mais

Olhar para o impossível e dizer: “Eu consigo!”

Vamos rir mais

Ter coragem de dizer eu te amo! “pô”, não é tão difícil assim!

Vamos fazer de cada dia uma festa

Ei, eu sei que existem dificuldades, claro que existem, elas existem para você se surpreender consigo mesmo

Não deixe a vergonha te atrapalhar

O medo te dominar

O estresse contagiar

A avareza te afundar

A preguiça te limitar

A impaciência te desesperar

A tristeza te matar

Espere, confie, alcance

Vamos rir mais...

SEDE, SUOR E SAL

                Era uma miragem. Só poderia ser. O avesso da meia noite, sol na cara, sede, suor e sal por todo canto. O carro vermelho parou e abriu sua boca gelada:

 

- Entra aí, tá todo suado! Tá indo pra onde?

 

            Olhou para esquerda, direita e para trás, procurando alguém, mas era com ele. Entrou no carro, pôs o cinto e fechou os olhos. The look of Love tocando, na voz da Diana Krall. Ouviu a música. Sentiu a brisa do ar condicionado. Parecia roteiro de cine privê, mas a música era boa e a temperatura também, então relaxou até o momento do aplauso.

 

- Amo esta música, sussurrou para a motorista.

- Eu também.

- Respondendo sua pergunta, estou indo para casa, almoçar e cochilar.

- Ok, indique o caminho que te deixo na porta, a menos que queira sugerir outro destino...

- Não consigo deixar de notar a marca da aliança recém-tirada. Quem rompeu com quem?

- O tempo nos rasgou no meio. De um que fomos, nos fizemos dois em tédio e ódio.

- Como alguém se entediaria ao lado de uma mulher interessante como você?

- Isso não é novela, amigo. Me sinto a mulher mais feia do mundo. Feia e velha.

- Quantos anos?

- Trinta e dois.

- Você não é velha, nem feia. Casou com que idade?

- Com dezesseis, convencida pela minha mãe, a “fisgar o bom partido”. Agora, dezesseis anos depois, veja como estou: um fracasso de mulher. Perdi minha juventude e beleza, não estudei, não fui feliz, e agora estou aqui com você. Quer me comer?

 

            “Pronto, agora é cine privê mesmo”, pensou. Era um rapaz de muitos escrúpulos no que tangia à alma feminina. Não suportaria ver uma dama chorar. Embora fantasiasse uma situação como aquela em seus momentos de solidão, que eram muitos, jamais seria invasivo com aquela jovem senhora, que gentilmente cedeu-lhe a intimidade de seu carro.

 

- Hã?

- Vai dizer que entrou no carro só por causa da carona? Quer me comer ou não?

- Podemos conversar mais um pouco?

- Não vai me dizer que, de todos os caras para os quais eu poderia dar carona, o que está aqui é gay, por favor...

- Não sou gay.

- Então, quer me comer ou não? Não sou gostosa o suficiente? Quando tinha dezesseis todo mundo queria me comer, mas não dei pra ninguém. Casei virgem, de branco na igreja e tudo. E de que adiantou? Nada. Casei sem foder e a vida fodeu comigo.

            - Você é muito bonita, a questão não é essa.

- E qual é a questão? Só para avisar, vou entrar no primeiro motel que aparecer.

- Não sou eu que estou no volante...

 

            Ela foi mesmo para o motel. Parou o carro na recepção, pediu a chave de um quarto caro, lá estacionou, desceu do veículo e deixou a porta aberta atrás de si.

 

- Ei, não é para baixar o toldo?

- Não tenho nada a esconder, você tem?

- ...

 

            O rapaz foi ao banheiro e lavou o rosto tantas vezes, que poderia ter ficado sem pele. Quando retornou, a mulher estava nua e era linda, exceto por poucas estrias de alguma gravidez precoce. Ele corou. Não soube o que dizer, e sempre tinha algo para falar. Era um náufrago, definitivamente.

 

- Não quer me comer?

- Sim, quero. E vou.

 

            O jovem atirou-se na cama de roupa e tudo. Beijou-a violentamente. Ela cravou as unhas em suas costas e quase o partiu no meio com a tesoura de suas pernas. O termostato acusava quarenta  e nove graus de excitação, derretendo bijuterias e alargadores de orelha.

            Então veio o inverno antes do outono. Ela parou, empurrou-o e, em meio às lágrimas de sua verdade doída, cobriu-se com o lençol de muitos casais, a soluçar. Sentindo nojo de sua morte em vida, continuou a carpir sobre seu próprio cadáver.

 

- Eu morri há dezesseis anos...

- Não, você está viva, embora muito confusa. Não viveu nem um terço do que pode viver. Ainda não te conheço, mas presumo que seja um botão castigado, que vai se abrir numa flor tardia. Só precisa de cuidado, carinho, atenção. Precisa ser reconhecida como mulher, e não como objeto.

- Será que ainda tenho chance?

- Claro que tem!

- Vamos nos vestir e ir embora?

- Vamos sim. Minha camisa tá meio rasgada, mas vamos.

 

            Ela pediu a conta e pagou. Saíram do motel, circularam por alguns minutos ouvindo qualquer coisa no rádio, mas sem conversar. Ela então toma a iniciativa:

 

- Você mora onde mesmo?

- Do outro lado da cidade.

- Aproveita e desce naquele ponto de ônibus que parece vazio. Foi um prazer te conhecer.

- Espera, não ia me levar em casa?

- Ah, isso era antes.

- Não vai ao menos me dizer seu nome?

- Não. Agora desce que vou ao salão, cuidar do cabelo e das unhas. Você abriu meus olhos. Desabrocharei.

- Não posso pegar ônibus com essa camisa rasgada, vão pensar que sou bandido.

- O importante é você ter a certeza de que não é. Agora desce.

- D:

- Tchau XD

- D:

 

            Pegou o ônibus cinquenta minutos depois, chegou em casa às cascas para comer, mas precisava de um banho para se livrar do sal e da sede. Banhou-se brevemente, bebendo a água morna do chuveiro, de modo a não perder tempo.

            Na cozinha não havia comida. Todos saíram para o restaurante. Na mesa branca de plástico, um bilhete.

 

Te esperamos, mas a fome era muita, então fomos sem você. Até mais tarde.

domingo, 17 de outubro de 2010

O LADRÃO E O LADRÃO?

DELEGADO: como assim, você colidiu com um carro, desceu do seu e roubou outro para se vingar?

ACUSADO: não roubei, doutor. O motorista do outro veículo me apontou uma arma, mandando descer do meu carro. Como eu estava apressado, utilizei a viatura abandonada pelo meliante para chegar ao meu destino, quando fui abordado pelos policiais, que me informaram ser o carro que eu dirigia produto de furto. Agora estou aqui.

DELEGADO: Então você roubou um carro que já era um carro roubado?

ACUSADO: Como já disse, doutor, não roubei nada. Só dei azar de conduzir um veículo subtraído de seu dono original por um terceiro.

DELEGADO: você vai me dizer que também não sabia que o “seu” carro também era roubado?

ACUSADO: doutor, isso é uma acusação muito grave.

DELEGADO: eu sei. E os policiais que prenderam o “ladrão” do seu carro só o fizeram por causa da denúncia de roubo, que partiu do dono, e, a menos que você se chame Josefa D’Alma Avelar, é suspeito.

ACUSADO: doutor, Josefa é minha mãe. Chamo-a de mamãe Jô.

DELEGADO: mãe? Então você é um temporão e tanto, porque dona Josefa tem setenta e cinco anos.

ACUSADO: doutor, sou filho adotivo, de papel passado e tudo.

DELEGADO: seu nome consta no sistema como João de Jesus dos Santos.

ACUSADO: doutor, o senhor sabe que a informática tem suas limitações.

DELEGADO: cabo, por favor, relate os fatos, que estou cansado dessa embolada.

CABO: pois não, doutor. Os acusados envolveram-se em um acidente de trânsito. Ambos conduziam carros roubados. Após a colisão trocaram de veículos e fugiram para direções opostas, sendo presos em setores diferentes da cidade, e trazidos aqui para a DP.

REPÓRTER: o senhor roubou um carro e bateu em um carro que também era roubado, e teve o carro roubado pelo ladrão que dirigia o outro carro roubado, e em seguida roubou o carro abandonado pelo homem que roubou o carro roubado que o senhor dirigia, e está preso na mesma delegacia que o homem que roubou o carro roubado do senhor?

ACUSADO: isso é uma acusação muito grave, doutor. Como relatei ao delegado, não roubei nada. Só dei azar de conduzir um veículo subtraído de seu dono original por um terceiro, que se evadiu do local utilizando o automóvel pertencente ao alheio que eu conduzia. Em outras palavras, doutor, sou inocente.

sábado, 16 de outubro de 2010

O POETA

Panela de sopa de carne sobre a mesa do computador,
Lápis enfiado de travessa no cabelo e com algumas mechas soltas
All star preto comum balançando nos pés, escrevendo...
... textos, reflexões poesias, não precisa rimar.
Basta apenas ter sentido para quem lê
E a cada garfada, uma nova ideia.
Casos e acasos,
Alguns contam histórias verdadeiras, outras apenas ficção.
Algumas têm o sentimentalismo, e outras uma ponta de ironia
Mas todas têm algo em comum: retratam por menor que seja,
Algo que após ser lido foi ou é real para alguém.
E enquanto houver a simples poesia, o simples texto
Escrito a mão ou nos teclados do notebook,
Haverá o poeta, haverá o significado,
As lágrimas, os risos, o sarcamo.
E não são apenas textos feitos para se passar o tempo
Retratam o sofrimento escondido
Por entre tantas e tantas linhas da vida
Você vai abrir seus olhos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

NOTA AOS MESTRES

Dia do professor. Duas e meia da manhã. Eu, Karla e a Valentina na barriga da Karla. Apesar dos braços engessados, persisto a digitar com um dedo só. Desejo aos meus colegas mestres toda a felicidade do mundo, e também a mim, e à Karla e à Valentina na barriga da Karla. Tenho fé, amigos, que as coisas melhorarão. Por isso estamos no magistério. Grávidos, não sem dor. Mas com fé.

PARA O TEU OUTONO

O alarme de todos os dias

Grita-me.

Grita-me

O que devo e o que não devo.

Tenta abrir meus olhos

Que não ouvem,

Não neste poema pequeno.

 

O poema diminuiu.

Dói-me o espaço

De cento e quarenta caracteres do poema.

Dói-me a higiene do abraço ausente,

Dói-me o ódio da multidão sem corpo.

 

O alarme grita-me o que não devo.

O que não devo?

Digo o que não devo.

Não devo me contentar com as folhas secas

Do teu outono que precede o inverno de lençóis sozinhos.

Para mim

Mais é a umidade daquele verão

E das sementes lançadas

Na terra

Que arei com dedos e unhas curtas

 - A terra que tomei.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

POEMA DE AMOR

Não faço poema sobre

Dor de amor,

Porque o amor

Não me dói.

O amor me alegra.

Me seca o suor

Da camisa depois

Do pesadelo.

Canta para mim

Com a mão nos meus cabelos,

Que hoje são curtos

E em parte brancos.

O amor me faz jovem e velho

E jovem de novo.

O teu amor.

domingo, 19 de setembro de 2010

ESCRITO COM O DEDO INDICADOR

Será uma mordaça capaz de calar o poeta?

O quebrar de seus dois braços

Abortará seu sótão multigrávido de idéias?

Engessar seu pé esquerdo

Cessará seu passeio sereno sobre as cinzas deste seco chão?

Digo que não.

Podem quebrar todos os ossos de seu corpo

E privá-lo de todos sentidos.

Se houver memória, haverá poesia.

Haverá o poeta.

domingo, 5 de setembro de 2010

DOIS CAFÉS. DIGO, UM.

O poeta estava puto. Há mais de oito dias sem escrever uma linha, encontrava-se à beira da sanidade. Necessitava de alguma loucura para criar. Tudo era tão cotidiano, que o irritava profundamente.

- Marcos, traz um café com leite por favor.

- Mais café do que leite?

- Sim.

- Açúcar ao invés de adoçante?

-As coisas com adoçante ficam com sabor de adoçante, e não das coisas. Uma vida apenas com adoçante como opção seria insuportável. Nem seria vida.

- Eu nunca entendo dessas coisas, Sr.

O poeta indagou-se silenciosamente se poderia sentar-se em um real café, ser atendido por um garçom chique e pedir um expresso pensando em como por no papel as dores do mundo. Mas na realidade estava em uma loja de conveniência de um posto de gasolina, ouvindo pessoas com sotaques feios falarem sobre tudo na vida, exceto sobre poesia.

Uma garota magra entra na loja. Veste uma malha cor-de-rosa, jeans e leva nos pés sandálias brancas de plástico, cada uma adornada com um laço. O sutiã com estampa xadrez escapa por entre as reentrâncias da malha, enquanto o poeta a observa indiscretamente. Ela o ignora, senta-se na elevada cadeira de alumínio, enquanto a calça de cintura baixa deixa escapar uma calcinha preta, também decorada com um laço. Haveria mais laços onde o jeans não permitia a visão da calcinha? O poeta corou.

- Marcos, papel e caneta. E mais um café por favor.

- Mais café do que leite?

- Sim.

- Açúcar ao invés de adoçante?

- Sim, Marcos.

O poeta pôr-se a escrever sobre a moça magra de longos cabelos ruivos, com mechas loiras, provavelmente caras de algum salão de beleza.

ELA ALVA

Alva, com olhos amendoados.

Compridos cabelos, da cor de cobre.

Olha para o infinito. E além?

As mãos cerradas uma à outra. Vermelhas.

Sandálias brancas, pequena ela. Via outros,

Mas não se via diante do espelho.

O poeta puto por não poder criar.

E ela, o que era?

Era uma fotografia do porvir.

Na verdade ela não era alva, era como uma índia. Os cabelos não eram ruivos, eram negros. E Marcos, nervoso, na hora de entregar o café, derramou-o sobre o poema, inutilizando-o. O poeta? O poeta estava como qualquer outro: puto.

domingo, 22 de agosto de 2010

SARA JENNIFER

Dizem que a curiosidade matou o gato. Sara Jennifer pensava em como a falta de curiosidade matou o homem. E o homem dentro do homem. “Povo sem graça, só pensa em coisas da moda, não tem identidade. Todo mundo quer ser igual. É o planeta dos sem-rosto, credo”.

Chegara em casa mais tarde que o habitual, depois de uma desagradável discussão com sua melhor amiga, que resolvera mudar radicalmente de pele, seguindo a tendência dos “coloridos”. Lembrou:

- Que merda de visual é esse, Joyce?

- É o visual restart, meu bem. Significa reiniciar, começar de novo, fazer algo diferente. Agora sou nova, ninguém é igual a mim.

- Ninguém, exceto por todos os outros coloridos, né?

- Hã?

- Hã nada, Joyce! Negócio de pulseirinha verde berrante de espiral, calça rosa e camisa azul-bebê. Vitório, vem cá!

- Que é?

- O que você acha dessa nova aparência da nossa colega?

- Porra de armação rosa sem lente, tá doida?

- Não é doida, meu bem, é moda.

- Moda é o meu ovo. Ano passado, se alguém aparecesse com armação sem lente aqui na escola, todo mundo chamaria de doido. Agora é moda. Tomar lá longe...

- Você não entende do mundo fashion, Vitório.

- Mas entendo de gente escrota. E agora gente escrota colorida.

- Joyce, sai dessa, minha filha. Se te mandarem raspar a cabeça e fazer tatuagem de air bender você vai fazer também?

- Se me fizer única, sim.

- Ai, meu ovo do meio! Joyce de avatar aqui na escola, já pensou? Essa eu faço questão de filmar e por no Youtube.

Sara, que tinha consciência de onde tal conversa pararia, finaliza:

- Atenção vocês dois, vou filosofar agora, e acabar com esse papo furado: cada um é cada um, mas sabe o que a merda, digo, a moda, faz? Taca máscara na nossa cara sem pena. Aí esse povo sem noção vira tudo de ponta a cabeça, dizendo que ser o que a moda ensina é o diferente, e que ser você mesmo é falta de estilo. Vamos tomar uma coca-cola antes que o recreio acabe, que estou com sede.

domingo, 15 de agosto de 2010

MEIAS VERDE-LIMÃO

Longa vida ao mais do mesmo. A menina acordou um belo dia, depois de atingida múltiplas vezes com as idéias do revival oitentista, querendo ser retrô. Foi ao guarda-roupa da mãe, pegou uma saia pregueada dos tempos do glam rock, e experimentou. A internet disse que é bonito e ela creu.

Composição: All Star cor-de-rosa, meias verde-limão, a saia pregueada em um azul-colegial, a camisa da escola, bracelete vermelho de plástico, óculos escuros com armação combinando com o bracelete, cabelo sem chapinha (que o que há agora é cacho), e brincos de pena.

Foi para a escola torcendo para encontrar com o João, do terceiro, pelo qual era perdidamente apaixonada. “Vou dar umas reboladas com essa saia da mamãe, duvido se não vai me notar”. Mal ela fechou a boca de seu pensamento, apareceu o João. “Agora vou apressar o passo e caprichar no rebolado”.

- Jéssica, espera.

Ela finge não ouvir e aperta um pouco mais um passo, para se manter sempre à frente. Faltam apenas três quadras para chegar na escola.

- Jéssica, me espera, por favor.

Fingiu não ouvir novamente, se sentindo muito gostosa, no seu visual Lady Gaga do nono ano do ensino fundamental.

- JÉSSICA, ESPERA, QUE TENHO QUE TE FALAR UMA COISA ANTES DE CHEGARMOS NA ESCOLA!

O rapaz continuava seu apelo enquanto andava mais rápido para alcançá-la. No entanto, quanto mais rápido ele andava, mais ela aumentava a velocidade de seu passo e de seu rebolado, até que praticamente corriam os dois. Alcançou-a e a pegou pelo braço, ela virou languidamente e disse “tava me seguindo?”.

- Praticamente. Tem uma coisa que preciso te dizer, desde a hora em que te vi.

- Tem a ver com o meu novo visual?

- Tem sim.

- Pode falar à vontade, não se importe com as pessoas ao nosso redor, pois eu notei que todos viravam para me olhar.

- Jéssica, tenho que te dizer.

- Claro, João.

- A tua saia tá toda pra cima, presa na mochila. Tentei te avisar antes, mas você não me ouviu.

Depois daquele dia, Jéssica passou a tomar mais cuidado com saias e rebolados.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

OS GALHOS ARRANHAM JANELAS

Os galhos arranham janelas
E sombras de medo comunicam a noite.
Os homens que não estão de zero
Dormem o sono dos tolos.
Um grito de socorro
Ouve-se na madrugada afora,
Talvez da boca de um crossdresser em fuga.
O poeta é o observador,
Camuflado no caos de sua escrivaninha interior. 

domingo, 8 de agosto de 2010

Marcleysson dos Santos e Santos

Marcleysson dos Santos e Santos. Detestava o próprio nome, desde que tentou escrevê-lo pela primeira vez. Agora é homem feito, caixa de banco privado, e continua a detestá-lo. Não havia diminutivos agradáveis para tal nome, como Zeca ou Cadu. Em certa época perguntou a sua mãe:

- Mãe, por que não me chamo João ou José, ou até Mário?

- Eu queria Marcos, mas o seu pai decidiu homenagear um jogador de futebol que ele admirava muito.

- É, mamãe, muita ironia eu não saber jogar bola. Agora tenho que aturar o estigma.

- Pense pelo lado bom. Você carrega uma marca do seu pai.

- Uma marca, talvez. Uma cicatriz, com certeza.

A lua do meio-dia brilhava aguda durante o diálogo acima. No mesmo instante, em um hospital público da cidade, nasciam três crianças que seguiriam um destino parecido com o de Marcleysson.

PRIMEIRO SEGUNDO DOMINGO DE AGOSTO. VALENTINA.

Dia dos pais. Como pai, o meu primeiro. Ainda há pouco, falava com o Ernani no MSN. Tá certo que “te amo pra caralho” não é a mais bonita declaração que se pode fazer para alguém neste dia, sobretudo se a pessoa tem análise marcada para as dez da manhã. “As estrelas são assim, só têm tempo aos domingos”, concordo com isto – mas não digo só estrela, digo constelação: muitas estrelas em uma só. Escrevi e teclei ENTER. Já foi. Data melancólica, em que todos os amigos mais velhos, pais substitutos não intencionais, recebem a declaração citada acima, muitas vezes de forma não verbal, se vistos cara a cara. Bem aventurados os que têm amigos, porque podem dizer para alguém ou “alguéns” que sentem isso, o que foi dito no começo deste post. Poderia falar tudo isso através de personagens, como tenho feito nos últimos meses, mas resolvi mostrar o rosto. Dar o texto a tapa. Quase aos trinta, pai de uma menina, Valentina, que em alguns meses nascerá, vejo que a falta do “pai” me proporcionou a experiência da diversidade de figuras importantes ao longo de minha vida, que exerceram tal papel. Márcio, de quem carrego o nome. Tio Thomas me levando para andar de moto, me jogando dentro do tonel para não ser mordido pelos cães bravos, dizendo sempre para cuidar do corpo, para viver muito e bem. João Tavares traçando o mapa da poesia, tentando me manter longe do concretismo. Christiano dizendo “você tem que sair desta cidadezinha e correr atrás dos seus objetivos, você tem potencial” – foi ali que ele, fingindo tocar, me levou ao desejo de ser músico. Professor também. Ironicamente, poucos anos depois éramos colegas de classe na graduação em Filosofia. E os conselhos do literalmente grande amigo estavam sempre ali. Bigodinho de Cerilo Lalico, dizendo que não devemos prometer algo se não temos a intenção de cumprir. Xavier da Teresa, mantendo meus pés no chão com suas histórias sobre as vantagens de amar a mesma mulher todos os dias e ter um emprego público para sustentar as necessidades materiais de tal amor. Sergio às voltas com seus amores por cada descoberta de Isadora, disponível para ela vinte e quatro horas por dia, receitando Mozart e banhos de sol para ter uma menininha saudável e tranqüila. Arison e suas meninas, com a lição de que não é preciso falar alto para ter autoridade. Ernani em várias fases, desde o all star azul até o “adorniano às margens do Tocantins”, às voltas com as festas de aniversário do Pedro e os relatórios de pesquisa de seus pupilos, permeados pelo sopão com orégano (da próxima vez na minha casa – prometo que vou comprar carne de primeira). Seu Manoel da Coração, com suas belas histórias de quem faz estradas e cria bem os filhos. Augusto, pai de um casal. Valdecy, pai de meninos. Toly, pai de Murilo e de Danilo, tentando me ensinar a lidar com veículos de quatro rodas e filhos adolescentes. Sydney, de quem tenho aprendido que Deus é um pai amoroso. Muitos outros, que não cabem na página, cada um com seus caminhos e descaminhos, fizeram e fazem parte desta caminhada. Hoje eu, com Ana Rosa, Lucas, Murilo, Lucas de novo, Walysson, Thaís e muitos outros e outras. Bem aventurados aqueles que têm amigos. E professores. Se ouvir alguém dizer “eu te amo” com um palavrão como complemento, não se assuste. O palavrão é só para evitar o clichê. Feliz dia dos pais a todos.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A QUARTA CANTIGA DE SEU DESAMOR

Na cantiga dos peixes do aquário ela se perdeu. Não conseguiu lavar a contento o fundo de seu oceano particular. Ainda pingava o tanque de fibra, com restos de espuma na água encardida, enquanto os peixinhos dourados nadavam em círculos na vasilha de um real e noventa e nove centavos.

- Que foi, minha filha?

- Nada, só cansaço. – mas não era apenas um cansaço no corpo.

Era um cansaço surreal, a produzir as imagens da inquietude. Via o chefe, os copinhos de café, o barulho das impressoras matriciais, o telefone celular que tocava sua música mouca, e o reflexo de seu rosto pálido no monitor CRT do computador em que trabalhava. De repente todos os outros funcionários sustentavam aqueles pesados monitores ao invés de cabeças humanas.

“Será hoje à tarde”, pensou. “Devo ir ou não?”. Toca a campainha. Pelo interfone ela indaga o nome de quem estava do outro lado da porta. “Sou eu” – ela reconheceu a voz.

- Senta aí.

- Eu vim rápido, só para te pedir um conselho, pois você é a pessoa que considero mais competente quando se trata do coração.

- O que houve?

- Penso em pedir a Silvia em casamento. O que me diz?

- Há alguma coisa que te impede?

- Não, não há. Só a família, que não me aceita de jeito nenhum, porque sou mais baixo que ela.

- Sério? – e ela inevitavelmente riu.

- Seríssimo. Eles dizem que não querem ter netos baixinhos.

- E ela, o que quer fazer?

- Casar, ora.

- Então se case com ela, e torça para os filhos puxarem para a família materna. Desculpe, não pude perder a piada. Você me conhece.

- Tudo bem, então. Já me decidi. Vou casar. Agora vou andando, porque tenho que lavar o carro. Tchau.

- Tchau.

“Eu também me decidi. Não irei, para não me apaixonar. Mas não tenho coragem de telefonar e desmarcar. Vou fingir que adoeci.”

E assim permaneceu, recusando-se a receber carinho, a não ser dos peixes que nadavam em círculos. Essa seria a quarta vez.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Com 16 anos

Era uma daquelas pessoas que se sentiam totalmente sem atrativos perante os olhares alheios. Depois de um longo período mergulhada nas paredes espessas da tristeza, sua alma doía de tanta felicidade, tal como quem come muito depois de ter passado fome. Era tudo muito confuso. Olhava para as traças e rabiscos da parede, evitando os olhos de seu pretendente.

- Mas você me ama mesmo? Tem certeza?

- É a única certeza que tenho.

- Mas não te mereço.

- Merece.

- Não, não mereço, nem sei quem sou.

- E quem sabe?

- Não sei, estou com medo.

- Medo de amar?

- Medo de que alguém me ame. Ninguém me amou antes. E se eu não te amar? Não quero me sentir obrigada a amar só porque sou amada pela primeira vez. Amar por obrigação estragaria o amor.

- Não se sinta obrigada a me amar, mas deixe que te ame.

- Não sei, vou pensar. Me dá uma semana?

- Tudo bem, meu doce, você é quem sabe. Te esperarei sempre. Tanto que te chamo de “meu doce”. É a primeira pessoa que chamo assim.

Ela sorriu tímida, exibindo apenas as gengivas para aquele rapaz que conhecera na fila do banco, horas atrás. As gengivas eram maiores do que os dentes. “Tchau”, despediu-se a estreante nos caminhos do amor. “Até, logo, meu doce”.

- Alô? – atende uma voz feminina.

- Olá, meu doce. Nos conhecemos hoje cedo, na padaria. Não sei explicar, mas acabei de descobrir que te amo. Uma prova disso é que te chamo de “meu doce”, coisa que nunca fiz com ninguém. Podemos nos encontrar pessoalmente, para eu olhar nos teus olhos, mesmo que seja pela última vez?

- Claro! – respondeu a voz feminina, demonstrando a euforia das folhas de erva cidreira nascendo em locais de muita água – me encontre na mesma padaria daqui a vinte minutos.

E o mentiroso seguiu, plantando sorrisos nos rostos de mulheres que considerava feias.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

AUGUSTO E CÉSAR

Augusto e César já haviam perdido a conta de quantos anos se passaram desde que se tornaram amigos. Eram dois homens de mais de trinta anos quando os fatos da presente narrativa ocorreram. Sempre gostaram de boa música e de longas conversas sobre tudo, desde adesivos para carros até a indústria cinematográfica.

Duas notícias puseram uma pequena curva na amizade dos dois: Augusto fora aprovado para um mestrado no Canadá, enquanto César era chamado para assumir efetivamente um cargo público federal. Despediram-se no aeroporto em meio a lágrimas e brindes com água sem gás. Prometeram mandar e-mails todos os dias e apostaram para ver quem casaria primeiro.

César largou na frente, pois já namorava Raquel há mais de dois anos. Raquel era linda como as modelos das propagandas de cerveja, e não precisou de um bisturi sequer para isso. Era também muito religiosa, e insistia muito para que César visitasse sua igreja.

- Vamos lá, não custa nada. É só uma reunião onde iremos conversar sobre temas da atualidade e depois vamos lanchar. Você não conversa tanto com o Augusto?

- Qual o nome da sua igreja?

- Ela não tem nome, não precisa. Não é o letreiro iluminado que identifica a igreja, mas a atitude dos seus membros.

- Hoje não. Não gosto de igreja.

- Acha que eu te convidaria se soubesse que você não iria gostar? A reunião vai ser na minha casa. Prometo te dar uma coisa muito especial quando acabar...

- Promete mesmo?

- Prometo! E você vai gostar muito...

Ele pensou e pensou. “Finalmente, depois de dois anos na seca, vai chover na minha floresta. É só ir para a bendita reunião, e depois música, jantar e sexo! Mas... o que a fez mudar de ideia? Deixa pra lá, o que vale é que vou me dar bem”.

Augusto chegou a Vancouver sentindo muito frio, mas estava empolgado com seu mestrado em educação. Sua vida no Canadá será totalmente previsível, voltada para sua formação, com uma farra aqui ou ali. De resto, voltará a ser citado nesta narrativa quando retornar ao Brasil.

Chegou o dia da reunião. Tomou um demorado banho, melhor do que se fosse sua mãe a lavá-lo. Vestiu cueca nova, meias novas, calça nova e camisas novas. Só os tênis eram os de sempre. E saiu.

Quando chegou à casa de Raquel, esta já o esperava, com seus amigos da igreja. Era um grupo aparentemente muito alegre e democrático. Não se vestiam como pessoas religiosas, nem o olhavam inquisitoriamente. Sentiu-se bem à vontade.

- Boa tarde, me chamo Cordélia Barroso, e sou a mestra deste grupo. Sinta-se em casa.

- Não se preocupe, sempre me sinto em casa, aqui.

O tema da reunião era este: “do que você tem medo?”

A mestra, muito descontraidamente, falou sobre seus medos. Um a um, cada membro falou sobre suas aflições. Enfim, chegou a vez de César. “Tenho medo de passar determinadas noites sozinho”, disse ele, olhando testosteronativamente para Raquel.

Cordélia levantou-se e posicionou sua cadeira de plástico na frente de César. Sentou-se, pegou suas duas mãos, olhou em seus olhos e disse: “alguém está me dizendo que, em breve, você não precisará passar uma noite sequer sozinho”. Você é especial, é precioso, precisa ser livre dos temores dessa vida”.

César não ouviu, sentiu aquelas palavras. Foram como soar de um potente subwoofer em seu peito. Tremeu. Sentiu gotas de suor descerem das sobrancelhas às bochechas. Aquela mulher possuía uma aura estranha, de divindade, ao mesmo tempo que era tão humana. Por uns instantes deixou de saber quem era. Logo voltou a si, com dupla fome. “Vamos comer, pessoal!”, disse a mestra, sem mais nem menos, largando as mãos do rapaz.

Eram cachorros-quentes. Todos comiam e falavam alto, ao passo que César tentava não sujar sua camisa nova com o molho posto em demasia no seu lanche. Inutilmente. Um grão de milho melado com os condimentos caíra na preciosa vestimenta. Cerrou os dentes para que não saísse o palavrão, afinal, estava no meio de religiosos.

Raquel sussurrou no seu ouvido:

- Daqui a pouco termina tudo, e vou te dar o presente.

“Eu sabia, bastava vir pra essa reunião e estava tudo resolvido. Dou uma coisa que ela quer, ela me dá uma coisa que quero. É hoje que eu tiro a libido da miséria!”. Coitado do jovem...

Um rapaz começou a tocar violão e cantar músicas do tipo “Sou apaixonado por Ti, Deus”, “Sou louco por Ti, Deus”, “Sou completamente alucinado por Ti, Deus”, enquanto seus colegas o acompanhavam harmoniosamente. César estava impaciente. “Deus não deixa ninguém doido, nem com alucinações”.

Raquel conversava baixinho com sua mestra, enquanto lavavam a louça. A impaciência do rapaz o levava a bater os pés no chão, agora acompanhando o ritmo da música. “Por que esse povo não vai embora?”.

Sem perceber, já não estava mais aborrecido com eles, de tanto carinho que lhe transmitiam. Era praticamente a sua família. Só precisavam ir embora, para que ele ganhasse a sua recompensa.

A cantoria para. A mestra pede a palavra.

- Hoje nosso amigo César ganhará um presente especial, dado diretamente pela nossa irmã Raquel. Pode entregar a ele. “Este grupo é tão democrático assim? Minha namorada vai anunciar isso na frente de todo mundo? LOL”

E ela coloca em seu braço uma pulseira, na qual se lia “eu sou uma pessoa especial para os meus irmãos”.

César não acreditava naquilo. No começo, um sorriso amarelo, depois expressão alguma, em seguida o rosto virava um completo “fuuu”. Fizeram um montinho para abraçá-lo, gritando “só falta tomar a sua decisão!”. Chama Raquel a um canto.

- Que merda é essa?

- É o seu presente. Não disse que ia gostar?

- Uma pulseirinha cor-de-rosa é o meu presente?

- Não é só uma pulseira. É um transmissor de reserva de poder espiritual.

- Transmissor de que?

- Use-a por cento e vinte dias e você receberá uma benção especial. Você tá vendo a alegria dos nossos irmãos? Pois é, tudo isso é por causa da reserva de poder espiritual que ganhamos. Você não quer ser feliz? Tudo o que tem a fazer é usar a pulseira.

- Vou embora. Informação demais para a minha cabeça. Decisão...

O rapaz, muito contrariado (epic fail) dirige-se à porta.

- Já vai? Tem certeza que não quer tomar sua decisão hoje?

Bateu a porta atrás de si e saiu. Minutos depois recebeu um SMS de Raquel:

VOCÊ ME FEZ PASSAR VERGONHA DIANTE DA MINHA MESTRA. ELA DISSE QUE VOCÊ NÃO SERVE PARA NAMORAR COMIGO E EU CONCORDEI. ADEUS.

Telefona imediatamente para sua namorada:

- Alô.

- Oi, aqui quem fala é a Cordélia.

- Passa o telefone para a Raquel.

- Não, se quiser falar algo, fale comigo, que sou sua mestra.

- Passa o telefone para a Raquel, sua FANÁTICA DE MERDA!

- Não vou passar. Você é um empecilho na caminhada espiritual da moça, será que não percebe isso? Eu tive o maior trabalho para fazê-la entender que precisava jogar fora tudo aquilo que não a edificava espiritualmente e você quer desfazer tudo? Ela jogou fora os CDs, DVDs e livros que não falavam do nosso Deus. Só faltava jogar fora você, e Deus criou a situação perfeita para que ela entendesse isso.

- Então você ORDENOU que ela terminasse comigo?

- Fui apenas um instrumento nas mãos de Deus. Agora ela está finalmente livre, para namorar e casar com um jovem da nossa igreja, seu ímpio. Ela já está predestinada a se casar com o irmão Dejalmir. Nossa profetiza já havia revelado isso.

- Peraí, jogou fora todos os livros, inclusive os que foram presentes meus? Vai se casar com o irmão quem?

- Sim. Essa semana ela fez isso. Agora está totalmente voltada para Deus.

- Ok, vou desligar. Não tem diálogo com você.

“Que Deus te liberte desses demônios”, sussurrou Cordélia Barroso, após desligar o telefone.

- Então, ele aceitou?, perguntou Raquel.

- Os demônios fizeram-no ter um ataque de ira.

- Coitado...

- Mas sorria, ele não te importunará mais.

- Será que fiz a coisa certa?

- Claro, meu bem! Você é princesa preciosa para Deus. Agora vamos planejar o restante da sua vida.

César tentou ligar de volta algumas vezes, sobretudo porque estava furioso com Cordélia, mas era repetidamente ofendido pela voz mecânica que dizia: “sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens, e estará sujeita a cobrança após o sinal”.

Desde aquele incidente não soube mais notícias de Raquel. Um ano e dez meses depois, foi buscar Augusto no aeroporto.

- Casaste?

- Não, as estrangeiras são muito esquisitas. E tu?

- Também não.

- Tenho uma ótima notícia para te contar: mudei de vida. Conheci um grupo muito alegre de missionários no Canadá, e eles me fizeram ver a verdade.

Mal Augusto terminava a palavra “grupo muito alegre”, César já se dirigia ao estacionamento, para ir embora, com medo do que viria. Dirigiu até o supermercado mais próximo com o intuito de comprar algo para comer. Na fila do caixa, cruza com alguém muito familiar: era Raquel, pálida e muito magra, com os olhos fundos tais como pratos de sopa vazios, praticamente irreconhecível. Segurava um bebê, tão magro quanto ela, que chorava muito.

“Vou fingir que nem vi”, pensou ele. Tarde demais.

- Não fala mais comigo, é?

- Oi, tudo bom?

- Tudo sim, olha a minha camiseta: “encontrei a verdade, sou feliz e mais bonita”. Este é meu bebê, Dejalmir Filho. Eu ia colocar o nome do meu pai, mas a minha mestra disse que não traria crescimento espiritual. E você, já tomou sua decisão?

- Que decisão?

- A de ser feliz como nós.

- ...

- O Dejalmir tava trabalhando perto na tua rua, reformando uma casa, mas sofreu um acidente e está parado agora. A mestra disse que foi falta de fé dele. Concordo com ela. Estamos vivendo do meu serviço.

- ...

- Eu sou empregada doméstica na casa da Cordélia. Estou muito feliz, porque tenho a oportunidade de conseguir mais e mais reserva de poder espiritual com ela. Este já é meu pagamento.

- ...

- Recebi a profecia de que vou ganhar um carro importado, no ano que vem, dependendo do número de aprendizes que eu fizer. Por causa da minha falta de fé eu quase desisti, quando as dificuldades aumentaram. Fui parar no psiquiatra, vê se pode?

- ...

- Ele me disse que a igreja me fazia mal, e quase acreditei. Tomei um monte de remédios controlados para depressão, ansiedade e alucinações, mas voltei a mim e me desculpei com a Cordélia, pela minha fraqueza. Não eram alucinações, era um dom maravilhoso que eu estava recebendo, mas perdi, porque não acreditei. Se a minha fé fosse maior, eu poderia ver o mundo espiritual! Agora, só depois de muita submissão.

-...

- Olha, é a sua vez.

- Não, não, pode passar, que eu pago.

- Obrigada! Dá tchau pro titio César, bebê! Tchau!

César quis pensar sobre tudo aquilo, mas já estava com dor de cabeça. Pagou as compras e foi embora, ouvindo “fake plastic trees” a caminho de casa. A partir daquele dia nunca mais conversou sobre nada com Augusto. Nem sobre adesivos automotivos, nem sobre cinema, muito menos sobre qualquer conceito de felicidade.