domingo, 22 de agosto de 2010

SARA JENNIFER

Dizem que a curiosidade matou o gato. Sara Jennifer pensava em como a falta de curiosidade matou o homem. E o homem dentro do homem. “Povo sem graça, só pensa em coisas da moda, não tem identidade. Todo mundo quer ser igual. É o planeta dos sem-rosto, credo”.

Chegara em casa mais tarde que o habitual, depois de uma desagradável discussão com sua melhor amiga, que resolvera mudar radicalmente de pele, seguindo a tendência dos “coloridos”. Lembrou:

- Que merda de visual é esse, Joyce?

- É o visual restart, meu bem. Significa reiniciar, começar de novo, fazer algo diferente. Agora sou nova, ninguém é igual a mim.

- Ninguém, exceto por todos os outros coloridos, né?

- Hã?

- Hã nada, Joyce! Negócio de pulseirinha verde berrante de espiral, calça rosa e camisa azul-bebê. Vitório, vem cá!

- Que é?

- O que você acha dessa nova aparência da nossa colega?

- Porra de armação rosa sem lente, tá doida?

- Não é doida, meu bem, é moda.

- Moda é o meu ovo. Ano passado, se alguém aparecesse com armação sem lente aqui na escola, todo mundo chamaria de doido. Agora é moda. Tomar lá longe...

- Você não entende do mundo fashion, Vitório.

- Mas entendo de gente escrota. E agora gente escrota colorida.

- Joyce, sai dessa, minha filha. Se te mandarem raspar a cabeça e fazer tatuagem de air bender você vai fazer também?

- Se me fizer única, sim.

- Ai, meu ovo do meio! Joyce de avatar aqui na escola, já pensou? Essa eu faço questão de filmar e por no Youtube.

Sara, que tinha consciência de onde tal conversa pararia, finaliza:

- Atenção vocês dois, vou filosofar agora, e acabar com esse papo furado: cada um é cada um, mas sabe o que a merda, digo, a moda, faz? Taca máscara na nossa cara sem pena. Aí esse povo sem noção vira tudo de ponta a cabeça, dizendo que ser o que a moda ensina é o diferente, e que ser você mesmo é falta de estilo. Vamos tomar uma coca-cola antes que o recreio acabe, que estou com sede.

domingo, 15 de agosto de 2010

MEIAS VERDE-LIMÃO

Longa vida ao mais do mesmo. A menina acordou um belo dia, depois de atingida múltiplas vezes com as idéias do revival oitentista, querendo ser retrô. Foi ao guarda-roupa da mãe, pegou uma saia pregueada dos tempos do glam rock, e experimentou. A internet disse que é bonito e ela creu.

Composição: All Star cor-de-rosa, meias verde-limão, a saia pregueada em um azul-colegial, a camisa da escola, bracelete vermelho de plástico, óculos escuros com armação combinando com o bracelete, cabelo sem chapinha (que o que há agora é cacho), e brincos de pena.

Foi para a escola torcendo para encontrar com o João, do terceiro, pelo qual era perdidamente apaixonada. “Vou dar umas reboladas com essa saia da mamãe, duvido se não vai me notar”. Mal ela fechou a boca de seu pensamento, apareceu o João. “Agora vou apressar o passo e caprichar no rebolado”.

- Jéssica, espera.

Ela finge não ouvir e aperta um pouco mais um passo, para se manter sempre à frente. Faltam apenas três quadras para chegar na escola.

- Jéssica, me espera, por favor.

Fingiu não ouvir novamente, se sentindo muito gostosa, no seu visual Lady Gaga do nono ano do ensino fundamental.

- JÉSSICA, ESPERA, QUE TENHO QUE TE FALAR UMA COISA ANTES DE CHEGARMOS NA ESCOLA!

O rapaz continuava seu apelo enquanto andava mais rápido para alcançá-la. No entanto, quanto mais rápido ele andava, mais ela aumentava a velocidade de seu passo e de seu rebolado, até que praticamente corriam os dois. Alcançou-a e a pegou pelo braço, ela virou languidamente e disse “tava me seguindo?”.

- Praticamente. Tem uma coisa que preciso te dizer, desde a hora em que te vi.

- Tem a ver com o meu novo visual?

- Tem sim.

- Pode falar à vontade, não se importe com as pessoas ao nosso redor, pois eu notei que todos viravam para me olhar.

- Jéssica, tenho que te dizer.

- Claro, João.

- A tua saia tá toda pra cima, presa na mochila. Tentei te avisar antes, mas você não me ouviu.

Depois daquele dia, Jéssica passou a tomar mais cuidado com saias e rebolados.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

OS GALHOS ARRANHAM JANELAS

Os galhos arranham janelas
E sombras de medo comunicam a noite.
Os homens que não estão de zero
Dormem o sono dos tolos.
Um grito de socorro
Ouve-se na madrugada afora,
Talvez da boca de um crossdresser em fuga.
O poeta é o observador,
Camuflado no caos de sua escrivaninha interior. 

domingo, 8 de agosto de 2010

Marcleysson dos Santos e Santos

Marcleysson dos Santos e Santos. Detestava o próprio nome, desde que tentou escrevê-lo pela primeira vez. Agora é homem feito, caixa de banco privado, e continua a detestá-lo. Não havia diminutivos agradáveis para tal nome, como Zeca ou Cadu. Em certa época perguntou a sua mãe:

- Mãe, por que não me chamo João ou José, ou até Mário?

- Eu queria Marcos, mas o seu pai decidiu homenagear um jogador de futebol que ele admirava muito.

- É, mamãe, muita ironia eu não saber jogar bola. Agora tenho que aturar o estigma.

- Pense pelo lado bom. Você carrega uma marca do seu pai.

- Uma marca, talvez. Uma cicatriz, com certeza.

A lua do meio-dia brilhava aguda durante o diálogo acima. No mesmo instante, em um hospital público da cidade, nasciam três crianças que seguiriam um destino parecido com o de Marcleysson.

PRIMEIRO SEGUNDO DOMINGO DE AGOSTO. VALENTINA.

Dia dos pais. Como pai, o meu primeiro. Ainda há pouco, falava com o Ernani no MSN. Tá certo que “te amo pra caralho” não é a mais bonita declaração que se pode fazer para alguém neste dia, sobretudo se a pessoa tem análise marcada para as dez da manhã. “As estrelas são assim, só têm tempo aos domingos”, concordo com isto – mas não digo só estrela, digo constelação: muitas estrelas em uma só. Escrevi e teclei ENTER. Já foi. Data melancólica, em que todos os amigos mais velhos, pais substitutos não intencionais, recebem a declaração citada acima, muitas vezes de forma não verbal, se vistos cara a cara. Bem aventurados os que têm amigos, porque podem dizer para alguém ou “alguéns” que sentem isso, o que foi dito no começo deste post. Poderia falar tudo isso através de personagens, como tenho feito nos últimos meses, mas resolvi mostrar o rosto. Dar o texto a tapa. Quase aos trinta, pai de uma menina, Valentina, que em alguns meses nascerá, vejo que a falta do “pai” me proporcionou a experiência da diversidade de figuras importantes ao longo de minha vida, que exerceram tal papel. Márcio, de quem carrego o nome. Tio Thomas me levando para andar de moto, me jogando dentro do tonel para não ser mordido pelos cães bravos, dizendo sempre para cuidar do corpo, para viver muito e bem. João Tavares traçando o mapa da poesia, tentando me manter longe do concretismo. Christiano dizendo “você tem que sair desta cidadezinha e correr atrás dos seus objetivos, você tem potencial” – foi ali que ele, fingindo tocar, me levou ao desejo de ser músico. Professor também. Ironicamente, poucos anos depois éramos colegas de classe na graduação em Filosofia. E os conselhos do literalmente grande amigo estavam sempre ali. Bigodinho de Cerilo Lalico, dizendo que não devemos prometer algo se não temos a intenção de cumprir. Xavier da Teresa, mantendo meus pés no chão com suas histórias sobre as vantagens de amar a mesma mulher todos os dias e ter um emprego público para sustentar as necessidades materiais de tal amor. Sergio às voltas com seus amores por cada descoberta de Isadora, disponível para ela vinte e quatro horas por dia, receitando Mozart e banhos de sol para ter uma menininha saudável e tranqüila. Arison e suas meninas, com a lição de que não é preciso falar alto para ter autoridade. Ernani em várias fases, desde o all star azul até o “adorniano às margens do Tocantins”, às voltas com as festas de aniversário do Pedro e os relatórios de pesquisa de seus pupilos, permeados pelo sopão com orégano (da próxima vez na minha casa – prometo que vou comprar carne de primeira). Seu Manoel da Coração, com suas belas histórias de quem faz estradas e cria bem os filhos. Augusto, pai de um casal. Valdecy, pai de meninos. Toly, pai de Murilo e de Danilo, tentando me ensinar a lidar com veículos de quatro rodas e filhos adolescentes. Sydney, de quem tenho aprendido que Deus é um pai amoroso. Muitos outros, que não cabem na página, cada um com seus caminhos e descaminhos, fizeram e fazem parte desta caminhada. Hoje eu, com Ana Rosa, Lucas, Murilo, Lucas de novo, Walysson, Thaís e muitos outros e outras. Bem aventurados aqueles que têm amigos. E professores. Se ouvir alguém dizer “eu te amo” com um palavrão como complemento, não se assuste. O palavrão é só para evitar o clichê. Feliz dia dos pais a todos.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A QUARTA CANTIGA DE SEU DESAMOR

Na cantiga dos peixes do aquário ela se perdeu. Não conseguiu lavar a contento o fundo de seu oceano particular. Ainda pingava o tanque de fibra, com restos de espuma na água encardida, enquanto os peixinhos dourados nadavam em círculos na vasilha de um real e noventa e nove centavos.

- Que foi, minha filha?

- Nada, só cansaço. – mas não era apenas um cansaço no corpo.

Era um cansaço surreal, a produzir as imagens da inquietude. Via o chefe, os copinhos de café, o barulho das impressoras matriciais, o telefone celular que tocava sua música mouca, e o reflexo de seu rosto pálido no monitor CRT do computador em que trabalhava. De repente todos os outros funcionários sustentavam aqueles pesados monitores ao invés de cabeças humanas.

“Será hoje à tarde”, pensou. “Devo ir ou não?”. Toca a campainha. Pelo interfone ela indaga o nome de quem estava do outro lado da porta. “Sou eu” – ela reconheceu a voz.

- Senta aí.

- Eu vim rápido, só para te pedir um conselho, pois você é a pessoa que considero mais competente quando se trata do coração.

- O que houve?

- Penso em pedir a Silvia em casamento. O que me diz?

- Há alguma coisa que te impede?

- Não, não há. Só a família, que não me aceita de jeito nenhum, porque sou mais baixo que ela.

- Sério? – e ela inevitavelmente riu.

- Seríssimo. Eles dizem que não querem ter netos baixinhos.

- E ela, o que quer fazer?

- Casar, ora.

- Então se case com ela, e torça para os filhos puxarem para a família materna. Desculpe, não pude perder a piada. Você me conhece.

- Tudo bem, então. Já me decidi. Vou casar. Agora vou andando, porque tenho que lavar o carro. Tchau.

- Tchau.

“Eu também me decidi. Não irei, para não me apaixonar. Mas não tenho coragem de telefonar e desmarcar. Vou fingir que adoeci.”

E assim permaneceu, recusando-se a receber carinho, a não ser dos peixes que nadavam em círculos. Essa seria a quarta vez.