quarta-feira, 30 de junho de 2010

POEIRA, FULIGEM E UM DEDO D’ÁGUA

Chamo-me João Francisco Rosa da Silva. Contarei uma rápida história, sobre poeira, fuligem, poeira de novo e fuligem de novo. E sobre falta d’água.

Antes, um rápido esclarecimento: devo meu vocabulário ao meu pai, o senhor cujo nome carrego. Não estudei mais porque o coração me destinou ao fogo de palha de um casamento infeliz e efêmero. Quando dei por mim, era pedreiro. E dos bons, se estudasse engenharia…

Estava eu voltando para a minha humilde residência, por volta de meio-dia e vinte. Calor desgraçado. Para chegar em casa, preciso atravessar uma ponte. Na verdade, todo mundo precisa passar por ela.

Quando digo todo mundo não exagero. Caminhões, ônibus, caminhonetes, táxis de cooperativas, táxis de lotação, carros de passeio, centenas de motocicletas, algumas carroças, e, finalmente, os ciclistas, categoria na qual me enquadro.

Na minha cidade não há ciclovia. Se houvesse, mudaria de nome para motovia. É incrível a capacidade dos motoqueiros de passar por qualquer espaço que lhes for dado. Outro dia, sem exagero, vi um motoqueiro se equilibrar por cima do meio fio por uns cinqüenta metros só para ultrapassar um outro motoqueiro, que já se equilibrava no acostamento para ultrapassar outro motoqueiro, que ultrapassava, por sua vez, um carro, pela direita. Sim, tudo isso pela direita.

Como não há ciclovia, tenho de me aventurar por entre tudo o que fora citado acima, com a minha monark barra forte, comprada por vinte e cinco reais de um desconhecido que queria beber cachaça e estava liso. Calor de fritar carne no chão. Nunca fui lá, mas dizem que só perde para Teresina. Caixa de ferramentas na garupa, trânsito parado, exceto pelas motos. Esperei que passassem, e segui em frente, rumo ao feijão com arroz e bife, que aprontei antes de sair, cedo.

Consegui chegar no semáforo, que mudava de amarelo para vermelho. Posicionei-me à frente de uma caminhonete, de onde emanava uma música sertaneja muito bacana. Senti-me no lugar do motorista, curtindo a música no ar-condicionado do veículo. Sinal verde e buzina: “sai da frente, carniça!”. Era o motorista de há pouco. Não pude deixar de cumprir a ordem, ou o cidadão passaria por cima.

Cheguei à ponte. “Agora é a minha vez”, pensei. “Os carros todos parados, vou passar do lado dele e dar um dedo”. Passei. Dei o dedo, mas ele nem viu, pois falava ao celular. Me lasquei.

Finalmente cruzei a ponte e percorri o longo caminho restante até a minha casa. Quando olhei para os meus pés, estavam cor de poeira. Não soube discernir qual era a cor da poeira, nem me esforcei para isso, pois estava com fome. A única coisa que me incomodava mais do que a fome naquele momento eram os pés sujos. Lavei-os rapidamente com água de um pequeno balde marrom.

Entrei em casa. Fui ao fogão. Vi que todas as panelas estavam destampadas, pois, na pressa de sair, esqueci deste detalhe. Com uma colher, tirei a fuligem de cima do arroz e do feijão. Mas os bifes, estes teriam de ser lavados. O chão da minúscula cozinha estava cheio de marcas de havaiana, e a fome apertava mais e mais. Levei a frigideira e uma vasilha limpa para o jirau lá fora, e abri a torneira. Saiu ar. Esperei até que o ar saísse e a água desse o ar de sua graça. Nenhuma gota. Já passava de uma hora da tarde, deveria estar no serviço às duas. O jeito era lavar os bifes com água gelada mesmo.

Corri à geladeira como se ela fosse a minha mãe. Quando a abri, madrasta. Nada de água. Cinco garrafas pet vazias e uma com um dedinho só do líquido precioso. O que eu faria com um dedo de água? Uma lama no bife? Me lasquei.

Fui comer com a televisão ligada. Arroz e feijão frios, sem bife, com um dedinho de água para desentalar. Na propaganda, o imperativo: pague a sua conta de água antes do vencimento, e ganhe descontos especiais. Precisamos manter a qualidade da água que você aproveita. Nem almocei mais. Antes entrasse em casa com os pés sujos.

Me lasquei de novo.

domingo, 27 de junho de 2010

SOBRE CLÁUDIAS E CORAÇÕES.

I

            Desde pequeno, Walffrido Ricarte é um ótimo desenhista. Nada escapa aos seus olhos. Se fosse um poeta, seria parnasiano com cem por cento de acerto. Mais do que pouca luminosidade, detestava filas de qualquer espécie. Filas de banco, de farmácia, de hospital, de cartórios, e outras filas. Engarrafamentos para ele eram o inferno na terra.. Aterrorizou-se quando tomou ciência de que necessitava autenticar cópias de seus documentos no cartório de segundo ofício de notas, na ocasião de ser aprovado em concurso público. Suou frio. Fantasiou todos os improváveis eventos desastrosos que poderiam ocorrer naquela infame fila.

            Arrumou suas coisas e saiu, mas voltou na mesma pisada para pegar também seu material de desenho. Sentia-se mais seguro levando consigo seu mundo, que era um conjunto composto de seus olhos, mãos, lápis e papéis em branco, onde pudesse desenhar. Desenhar sempre o acalmava, não importando onde estivesse. Chegou a desenhar na travessia para Alcântara: todos enjoando ao seu redor, mas ele se manteve impassível, tal como um aficionado por meditar em posição de lótus, rabiscando a orla de São Luís, que desaparecia pouco a pouco enquanto se distanciava o barco. Depois rabiscou jangadeiros e redes de pesca, e o trapiche onde aportaria.

 

II

 

            Entrou no cartório, olhou para todas as pessoas ao redor, sentindo-se tonto foi em direção ao dispositivo de onde retiraria a sua senha, pegou-a e se sentou na primeira cadeira vaga que viu em sua frente, curvando-se para acomodar a mochila no chão, próxima aos seus pés. Não conseguiu levantar a cabeça. Era como o capacete do Juggernaut, de tão pesada. Decidiu abrir o zíper para retirar o primeiro lápis que viesse à mão e uma das folhas de alta gramatura que sempre carregava.

            Como Ali se levantaria, ali levantou seus olhos lentamente, olhando para todos os guichês, a procurar onde seria atendido. Sua senha era a trezentos e cinqüenta e nove, e a tela de cristal líquido exibia ainda a de número trezentos e quarenta e dois. Enfiou a mão na mochila novamente e tirou o maior número de páginas que conseguiu alcançar.

             Não lembra ao certo do guichê, pois é péssimo com números, lembrando apenas de que era o penúltimo, nele escrito “casamentos, nascimentos e óbitos”. Olhou para essas três palavras algumas vezes, sem encarar a pessoa que estava detrás do balcão. Começava a chover; velozmente o lápis se punha a coçar o papel, descrevendo as gotas que caíam nas folhas empoeiradas. Não chovia há vinte e sete dias. Alguém pisa no seu pé. Tenta segurar a dor pressionando o lápis no papel, quando sua ponta. Irritou-se mais pela ponta quebrada do lápis do que pelo pisão. Quem seria o filho de uma égua autor de tamanha atrocidade?

 

- ALÔ! ALÔ! TÁ ME OUVINDO AGORA? E AGORA? HÃ? JÁ, JÁ ESTOU AQUI SIM! CLARO QUE TROUXE! DEIXA EU VER AQUI! OI? TÁ AÍ AINDA? HÃ? TÁ TUDO AQUI SIM! TÁ, TCHAU! BORA ASSISTIR O JOGO AMANHÃ, SIM! TCHAU!

 

            Se alguma coisa faltava para Walffrido acatar como verdades universais todas as teses componentes das leis de Murphy, era alguém gritar no seu ouvido, combinando assistir ao jogo de futebol no dia seguinte com aquele sotaque irritante universal de boleiro. Agora não faltava mais nada. Correção: faltava um apontador para que retornasse ao seu desenho. Era um pesadelo em todos os sentidos: fila, gente mal-educada e o lápis sem ponta. Só faltava um poodle encardido mijar na sua perna.

            Reuniu suas últimas forças, girou o pescoço como uma coruja, a procurar alguém que pudesse socorrê-lo com um apontador. Passo a passo registrou algumas imagens em sua mente:

 

1) Um gordo com peitos enormes, usando o visual “sou metaleiro: roupa preta e coturno com ponta de alumínio é o que há”

2) Outro gordo com um telefone celular na mão.

3) Uma menina grávida, de pé, segurando as mãos de outras duas crianças, enquanto o provável companheiro cochilava em uma cadeira.

4) Um idoso comendo um milho cozido (onde conseguira um milho cozido naquelas circunstâncias?)

5) O penúltimo guichê: “CERTIDÕES: nascimento / casamento / óbito”. Sobre o balcão havia, entre outras coisas, um apontador verde, dos mais baratos que se vendem por aí.

 

            Olhando mais acima, deparou-se com uma imagem que lhe fora como uma grande rajada de vento que afasta a ardida fumaça do mato queimando. Trajando a camiseta amarela do uniforme do cartório, ela olhava fixamente para o monitor, enquanto habilmente digitava documentos de amores, frutos de amores, ou de amores evanescentes. O perfil à mostra era o direito, exibindo seus longos, negros e lisos cabelos, tentando escapar de uma presilha lilás, vulgarmente chamada de piranha. Walffrido fixou os olhos tentando identificar o brinco, era um coração com uma pedra no meio. Enquanto ela digitava, o coração agitava-se, em movimentos randômicos, expressivamente.

 

III

 

            Era magra. Braços finos de uma pele clara decorrente do passar o dia todo no cartório. Walffrido Ricarte detestava o senso comum de que o bronzeado é bonito. Detestava pessoas douradas. “Querem ser frangos, para atestar que estavam de férias”, pensava ele. Em algum momento da divagação do desenhista, ela levantou-se para buscar documentos em um móvel repleto de gavetas. Parecia concebida para ele. Alguma existência superior arquitetou e deu forma aos seus mais profundos anseios por beleza, e ela estava ali, agachada, quase a mergulhar na mais baixa gaveta. Não possuía atributos extraordinários ou excessivos. Suas formas eram devidamente proporcionais, desde o busto aos quadris, cujos detalhes cabem apenas à mente do jovem desenhista.

            Lembrou-se de uma música do Lenine, que dizia “magra, leve e calma, toda ela é bela, tudo nela chama”. Ela se levantou, ele desviou o olhar para a página onde terminaria o desenho da paisagem chuvosa. Chuva que caía sem piedade. Chuva agressiva, como os desejos do mundo. Quando ergueu seus olhos novamente – julgando-se o mais discreto dos homens – a moça estava a olhá-lo, com um leve sorriso no canto esquerdo da boca, algo como um dardo, para um alvo escolhido delicadamente.

 

IV

 

            Naquele instante ficou mais amarelo do que o uniforme que ela usava, quase se mijando de medo. Retribuiu timidamente o sorriso, e fez um gesto de “posso te perguntar uma coisa?” e ela sinalizou que sim. Dirigiu-se ao guichê olhando em seus olhos, que eram verdes.

 

- Posso usar seu apontador?

- Claro que sim, cadê o lápis?

- Aqui.

- Deixa que eu aponto para você.

- Ok.

 

            Aquele lápis alcoviteiro descarado permitiu que suas mãos se tocassem, revelando que ambas estavam geladas. “Deve ser por causa da central de ar”, mentiram ambos a si mesmos no momento.

 

- Aqui.

- Obrigado.

- Como é seu nome?

- Walffrido.

- Prazer, eu sou Cláudia. As pessoas te chamam de Wal?

- Não, não, só de Walffrido mesmo. Também sou chamado pelo sobrenome, Ricarte. Wal só a minha mãe usava, e eu pedi que parasse, pois todos riam de mim, dizendo que era Wal de Walesca ou de Waléria.

 

            Cláudia, que era uma moça extremamente recatada, exibiu um leve sorriso enquanto se acabava de rir, por dentro, da desgraça de um homem ser chamado por um apelido feminino e continuou a conversa.

 

- Posso perguntar por que tanta pressa de apontar esse lápis?

- É que eu desenho, aí alguém pisou no meu pé, e acabei pondo pressão demais no lápis e a ponta quebrou.

- Posso ver o que você estava desenhando?

- Se não for atrapalhar seu trabalho.

 

            Não acreditava que o modelo de todas as coisas belas que imaginava pedira para ver um desenho seu. Poderia dançar, mas soaria esquizofrênico. Preferiu os calafrios da imensa felicidade, que arrepiaram até os cabelos de seu nariz.

            Enquanto ela olhava o desenho, o coração agitava-se. Lembrou-se de como as chuvas da infância sempre pareciam cinzentas, com uma leve melancolia e algo de um frio na barriga.

 

- Nossa, que lindo! Você desenha pessoas também? Você me desenharia?

 

            A atendente do guichê ao lado que até calada já estava errada interrompe a conversa:

 

- Desenhar é coisa de menino. Tira a foto no celular e passa por blutúti. É mais rápido, e ainda dá pra usar o fotochópe pra ajeitar as feiúras.

 

            Foi completamente ignorada. Tanto por Cláudia, quanto por Walffrido, que mantinha o sedimentado posicionamento de que as lentes das câmeras jamais poderão se igualar ao olho humano, pois a elas falta a capacidade de interpretar o objeto representado.

 

- Celular não une o olho e o coração. No máximo, capta, com baixa resolução, uma imagem sem sentimentos, sem intencionalidade, sem interpretação. Nem imagem é. É apenas um conjunto de pixels tentando ser imagem.

 

            Cláudia tropeçou em sua própria respiração, naquele momento, levando a mão ao peito, como se, de propósito, sincopasse o ritmo cardíaco. Pressionou tanto o peito que o pingente de bailarina fez uma marca vermelha, que ela não veria até o momento de chegar em casa, à noite, e se olhar no espelho, nua da cintura para cima.

 

- ...

 

            Sua colega indignara-se, pois seu celular fora comprado por suados duzentos reais, só por causa da câmera e do dispositivo Bluetooth.

 

- Fala isso porque é pobre. Se pudesse comprar um desses aqui não precisaria ficar apontando lápis. Tá atrapalhando meu trabalho aqui.

 

            Cláudia olhou bem fundo nos olhos de Walffrido, e apenas com aquele olhar, conseguiu dizer-lhe o intraduzível. Mas ele entendeu.

 

- Então, obrigado pelo favor.

- De nada.

 

            Retornou ao seu lugar para concluir o desenho da chuva.

            Cláudia divertia-se com nomes estranhos de nubentes. Já não conseguia disfarçar seu sorriso. O rosto cansado de antes dera lugar a uma expressão pueril, de uma moleca que acabara de ganhar um jambo. “Meu nome só estará nesta tela se eu me casar ou se morrer. Deus me livre de morrer agora. E de casar também. Só tem homem ruim nesta cidade. Não sonho tão alto assim. Só quero me sentir amada.”

            Avidamente concluía seu desenho anterior, quando se pôs a pensar, o solitário rapaz.

            Cabe uma rápida advertência: não era feio. Era solitário porque não gostava da superficialidade das pessoas.

            “Tirar a foto em um celular... como se já não me bastasse ter que cruzar todos os dias com essas cigarras tecnológicas tocando tecnotudo... Tecnossamba, tecnovalsa, tecnobrega, tecnomelody, tecnoharmony, tecnovouencheratuapaciência... só consigo ouvir cigarras, não discirno as músicas. É torturante. Só perde pros meninos de roupinha colorida apertadinha e cabelo caindo na cara. Mais torturante ainda.”

            Pensavam ambos, cada um em sua ocupação, enquanto que, simultaneamente, escreveram: ele escreveu, abaixo da assinatura que deu ao seu desenho, o nome Cláudia; ela escreveu Walffrido com uma caneta de tinta muito forte em um papel em branco que estava sobre a mesa, e desenhou uma flor em forma de interrogação. Ambos sorriram.

            Já não se sabia quanto tempo havia passado. Ninguém queria olhar para relógios.

            O monitor avisava a Walffrido que a próxima senha seria a sua, então decidiu voltar à Cláudia, e pedir seu endereço de e-mail, porque telefone sairia muito clichê.

            No entanto, traiu-se pelo senso comum:

 

- Mas se quiser pôr o telefone também...

 

            Ela anotou não apenas um, mas dois endereços de e-mail, e o número de seu telefone celular. Walffrido guardou o pedaço de papel como guardaria uma nota de cem reais: com alegria, mas com muita cautela para nele mexer, para que não estragasse.

            Finalmente chegou sua vez, e realizou todos os procedimentos que deveria realizar. A chuva parara de cair. Sem mais, abriu a porta para ir embora, mas ainda olhou o interior do cartório refletido naquele vidro temperado, e Cláudia olhava para ele. Pensou em voltar, mas decidiu seguir, pois detestava lugares cheios de gente. No mais, precisava criar. Não mais sobre a chuva, mas sobre Cláudias e seus brincos de coração.

 

V

            Já do outro lado da rua, ouviu:

 

- Espera! Você esqueceu o envelope!

 

            Era Cláudia.

            Novamente Walffrido lembrou-se de Lenina:

 

“Segue / Enquanto suspiro / Toda /Cor de tempero / Cheira / Um cheiro tão raro / Clara / Cura o escuro / Ela / Braços de linha / Dengo / Cheio de manha / Durmo / E peço que venha / Acordo / E sonho que é minha”

 

- Aqui está. Vê se não vai perder por aí. Nem se perder.

- Obrigado. Desculpe te fazer sair do local de trabalho só para me entregar isso (disse descaradamente, fingindo uma carência absurda).

 

            Ela piscou:

 

- Por que você acha que eu sairia do penúltimo guichê para te entregar o envelope esquecido no primeiro?

 

            Mal ela concluiu sua frase foi puxada pela cintura e abraçada fortemente. Todos os poros do seu corpo abraçaram e foram abraçados. As folhas secas da castanheira foram levadas para longe pelo vento que anunciava uma próxima chuva. Ele não a beijou. Ela não o beijou. Todas as células se beijaram, embora lábios não tenham se tocado.

 

- Preciso voltar lá pra dentro.

- ...

- Quando vou te ver de novo? – perguntou a moça, com seus contentes olhos verdes.

- Se você quiser, hoje mesmo.

- Tá bom, eu saio às cinco e meia.

- Ok, vou fazer umas coisas aqui por perto e passo aqui cinco e meia.

- Até logo.

- \o

 

            Quando ela saiu, cinco e meia, ele continuava no mesmo local de antes, a esperá-la, pisando em folhas secas de castanheira, com um papel em branco na mão direita.

 

- Por que esse papel em branco?

- Era eu, antes de ti.

 

            Então ele vira a outra face da página e exibe a ela a silhueta de uma moça muito familiar. Ela sorri, com os três corações inquietos.

            Não sei por quanto vai durar este momento, mas o que há no verso da página que te entreguei me fez vivo, hoje. Poderia dizer mais vivo do que momento em que nasci, mas seria dramático demais, o que não combina comigo, que detesto clichês ou chavões. Simplesmente me sinto mais vivo. Devo dizer isso a ela? De que forma diria sem parecer um completo maluco? Não direi nada. Convidarei-a para comer costela de Adão na lanchonete da rodoviária”

            Então ela, que parecia lhe puxar as palavras do cérebro, pensou:

 

“ Não sei por quanto vai durar este momento, mas te conhecer, hoje, me fez sentir mais viva. Poderia dizer mais viva do que momento em que nasci, mas seria dramático demais, o que não combina comigo, que nunca consegui gritar com ninguém. É como se esses teus olhos vissem dentro de mim. Eu queria sair para lanchar, mas perdi a fome. Perdi a sede também. Só quero sentar em algum lugar contigo e ficar quieta, sorvendo poesia contigo”.

- ...

- ...

            Ele nada conseguia falar. Nem ela. Pegou-a pela mão e saíram caminhando. Ele assobiava “magra, leve e calma, toda ela bela, tudo nela chama”. Ela pensava no frio na barriga de quando via a chuva pela janela.

            Um ciclista passou, dizendo “que casal mais fofinho!”

            E os dois continuaram a caminhar até desaparecer no horizonte, em uma paisagem com poucas árvores e muita fumaça ao fundo. Era época de queimadas na região, e os olhos das pessoas ardiam por causa dessa fumaça.

sábado, 12 de junho de 2010

DEPOIS DO TERCEIRO DIA

Não terei pressa, novo texto.

Espero o teu momento de nascer.

 

Rôo as unhas que perdi na última escalada da parede, novo texto.

 

Disparo um laser na lua enquanto te espero.

Rego as plantas de fazer chá,

Pinto as paredes do meu quarto de escrever,

Respondo e-mails nunca lidos de três anos

E decomponho a fórmula de tudo.

É verde, amarelo, vermelho, verde, amarelo, vermelho, verde, amarelo e vermelho de novo.

A dança de todas as coisas parou no vermelho, novo texto.

 

O que queres?

Formatarei os discos rígidos com todos os textos antigos,

Pois eles não me interessam mais.

Haverá gigabytes só para ti, amigo desconhecido.

 

Não, não os imprimi. Verdade!

Não me tenhas por autor de potocas.

 

O que queres mais? Só a ti espero, novo texto. Por que me afliges?

Algum amor te prende no mundo dos textos não escritos?

Terei de ir aí, te buscar à força?

Jamais!

Recuso-me. Sou um cavalheiro.

Se queres vir, aceite este meu enésimo convite.

 

Aqui estarei, quando chegares, se chegares.

E enfim poderei dormir, ao final deste quarto dia de espera.

domingo, 6 de junho de 2010

Pedaços de telha.

Não podia ordenar aos curiós que cantassem, mesmo os engaiolados. Àquela altura só o ser órfão de amor importava, e, mais do que isso, a vontade de se saber existindo, mesmo que inacabadamente. Já era dia lá fora? Havia sol ou chovia? Vento em algum pé de cidreira? Poeira nos olhos dos homens que andam de motocicleta sem capacete ou óculos de proteção? Sua cabeça doía só de pensar nisso. Ainda assim sorriu a si mesmo no quarto vazio. Toca o telefone.

- Vamos sair? Qualquer lugar serve, só por sair mesmo, até a beira do rio, pra jogar pedaços de telha e ver quantas vezes eles pulam na água!

- Liga daqui a dez minutos, que ainda estou acordando, tá?

- Tá.

Como alguém conseguia conceber a manhã de domingo como tempo para jogar pedaços de telha na água? “Se não fosse meu amigo, mandava à merda”. Mas lá no fundo concordava com seu interlocutor. Ficar em casa não resolveria nada. Falta de amor não se cura com solidão. Tentou erguer-se pela esquerda, não pôde. Tentou erguer-se pela direita, não pôde. Parecia colado na cama, com a goma de seus devaneios. Enfim, imaginou-se a voar, então pousou. Toca o telefone de novo. Precisava mudar aquele ringtone, que parecia o corvo do umbral, a dizer “hoje eu quero sair só, hoje eu quero sair só”, com a voz do Lenine.

- Entao, vamos? Passo aí pra te buscar.

- Eu disse dez minutos.

- Já se passaram quinze!

- ... (aquela altura tomara consciência de que levou mais de dez minutos apenas para levantar da cama, mas não se importava com isso, afinal não podia mandar em nada, nem nos curiós cruelmente encarcerados).

- Pode vir.

- Ok. Chego aí em meia hora.

Visualizou uma lista do que precisaria fazer antes de sua carona chegar: escovar os dentes, tomar banho, passar a roupa que usaria, comer algo. Riscou o “comer algo”, pois faria isso na rua. Buzina de carro.

- Anda logo, rapaz, parece que morreu e não sabe!

- ... (naquele momento quase o mandou ir à merda, e continuava sem entender como alguém estava tão animado em uma manhã de domingo).

- Então, para onde iremos?

- Contanto que você pare no meio do caminho para esse lugar que não sabemos qual é, a fim de que eu quebrar o meu jejum...

- Não tomaste café ainda?

- Tomei, tomei. Por isso quero tomar de novo. (se estivesse numa sala de chat, usaria o emoticon ¬¬ decididamente).

- Tá, já sei onde pararemos. Mas, para onde iremos depois?

- ...

Definitivamente, falta de amor não se cura com esse tipo de pergunta. Solidão muito menos. Até a falta d’água de mais de três dias que o obrigou a tomar banho de cuia no quintal era menos desagradável do que sugerir um lugar para ir em um dia no qual não gostaria de ir a lugar algum. O carro pára. O lugar não parecia muito asseado. Malemolentemente, uma senhora, que já não gozava de seus melhores anos e aparência, bate o guardanapo encardido em uma mesa de plástico para afastas as moscas.

- Tem tapioca de dois real e de três.

- O que vem na de três?

- Tudo o que vem na de dois, mais leite moça.

- Custa um real a mais para pôr um pouco de leite condensado na tapioca?, bradou indignadamente, por saber que o leite condensado era de alguma marca genérica e de baixa qualidade.

- Se quiser. Se não quiser, leva a de dois.

Quis ir embora, mas seu (feliz) amigo, tomou a frente: “vê aí duas de dois e dois cafés”.

- Quero café não.

- Tá, duas de dois e um café.

O amigo feliz se chamava Max. Danilo era o nome do outro. Danilo possuía um grande poder de observação, e notou que a senhora da tapioca não usava um lenço, mas uma fralda na cabeça. Pendurada na saia cor-de-rosa encontrava-se outra fralda, que era usada para limpar as mãos. “Limpar ou sujar?”, disse, em voz alta, Danilo, inevitavelmente.

Ao cabo de três minutos de conversa sobre nada, ela traz as tapiocas e o café de Max. Comem rapidamente. Max paga e vão embora. Danilo não consegue tirar as fraldas da cabeça. O carro ia com as janelas abertas, e ele divagava sobre sua sensação de impotência diante da falta de amor. Se bem que se ordenasse a alguém que o amasse, já não seria amor, seria servidão. O amor tem algo mais. Tem algo de um campo de batalha. Esconder e mostrar-se, puxar o cabo de guerra, avançar e recuar, sobretudo recuar nas horas certas, para avançar eficientemente. Sentia-se não como um morto, mas um ferido das batalhas do amor.

- Chegamos. Quanta gente!

- É por causa da falta d’água, o povo vem lavar roupa, louça e tomar banho no rio.

- Junto com os cachorros?

- Sim.

- Vamos embora, que isso acabou com o meu humor. Lavar louças na mesma água em que banham os cães. Olha ali, tem uma senhora lavando fraldas, cara!

- Já que estamos aqui, por que não fotografamos isso?

Max pega a câmera no carro, imerso em uma quantidade inacreditável de repulsa pela cena que presenciara. Era passional, não tomava jeito. Se estava feliz ou triste ou irritado, qualquer tolo o poderia notar. Não possuía um estômago forte, então passou a câmera para Danilo, que avidamente fotografava o que lhe chamava a atenção.

- Lembra de quando éramos pequenos e jogávamos cacos de telha na água? Eu fantasiava que meu caco poderia saltar tantas vezes que chegaria à outra margem do rio. Eu cresci, o rio diminuiu, e as pessoas lavam cães, fraldas e louças com a mesma água. E as minhas fantasias acabaram.

- Nunca deixe de fantasiar, meu caro. Quando sairmos daqui e as imagens desaparecerem de sua mente, você voltará a pensar em cacos de telha e sonhos de menino. Vamos embora.

- Como você consegue ser tão frio?

- A falta de amor me fez assim. Eu não mando na companhia de saneamento. Tive de tomar banho de cuia hoje.

- Ok, vamos embora.

Pelo retrovisor, Max e a realidade se distanciavam, enquanto Danilo revia as fotos que acabara de tirar. Há cinco dias não havia água nos canos.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

ISTO É UM SALOPETE.

Haviam saído tarde de casa, de lados opostos da cidade. O sol já estava alto, e as axilas dos homens e mulheres em pé no coletivo fediam. Podia até ver as gotas de suor que se recusavam a cair, no meio daqueles pelos crespos de sovaco. “Isso é no que dá ficar até tarde acordado”, pensou. Já era.

Em qualquer lugar do mundo seria esquisito um lugar vazio num ônibus lotado, mas ele resolveu acreditar em sua boa sorte, que acabou quando sentiu a umidade no bolso esquerdo de sua calça comprada na feira da 28, em domingo de promoção. Vômito, xixi de bebê, suco? “Merda de gripe”, reclamou silenciosamente, enquanto tentava conter um espirro. Não conseguia saber no quê havia sentado. Todos no ônibus pareciam rir, e a covardia o incapacitava de olhar ao redor para confirmar sua impressão.

Imaginou uma música da Lily Allen. Imaginou a própria Lily Allen. Sorriu com seu nariz ferido pelos lenços de papel, lembrando do videoclipe. Ergueu um pouco seus olhos e deu de cara com uma senhora de sorriso banguela, que passava para descer na próxima parada. Saíra de casa para um encontro marcado com uma amiga, em cujo conceito gostaria de subir; por isso vestiu sua melhor camisa e sua melhor calça. Sapato, usou qualquer um, pois pensava que mulheres só observam os sapatos de outras mulheres. “Tomara que isso não seja vômito. Ou tomara que ela também esteja gripada”, pensou.

Subitamente o ônibus parou. Nunca sentava na frente ou atrás, sempre no meio, para, no caso de acidentes ou assaltos, não sofrer muitos danos. Cria ser o único com tal opinião. Enganou-se. Uma empregada doméstica partilhava de seu posicionamento. Num momento de distração, o motorista do coletivo atingiu um motociclista e freou abruptamente o veículo. Simultaneamente a empregada caiu. Ajudou-a a se levantar, enquanto retirava do canto direito de sua boca uns três fios de cabelo de axila. “...” Sentia-se tão enojado que até em seu pensamento havia reticências.

- Obrigado por me ajudar, moço.

- ...

Sorriu polidamente, contendo todos os xingamentos de seu vasto vocabulário. Baixou os olhos e tentou se lembrar da Lily Allen. A essa altura até a Joelma serviria. Nada lhe ocorreu, apenas os três fios do sovaco da empregada de alguém, que lhe foram parar na boca. “Isso é no que dá ficar até tarde acordado”, prosseguiu. Abriu o zíper da mochila (que tentava fantasiar ser a boca da empregada) e enfiou sua mão a vasculhar à procura de qualquer coisa que pudesse ler. Era o que lhe faltava. Não havia trazido qualquer livro. Encontrou fones de ouvido e os conectou ao telefone celular. Começou a tocar No surprises, do Radiohead, uma de suas favoritas. Tristíssima. Somada aos recentes acontecimentos, poderia receber como bônus um desavisado cão que urinasse em sua perna. Mas não foi preciso.

- Moço, segura essa sacola pra mim?

- ...

- É que eu to levando uns doce de buriti lá pra onde a muié, e tá pesado, ó.

- ..., respondeu, e pegou a sacola, cujo odor característico o levou a um estado de não menos desespero.

Irônico, Alanis. Muito irônico. De todos os doces existentes na face da terra, aquela senhora (que lhe revelara sua intimidade sovaquiana) portava uma sacola repleta de barras de vômito instantâneo. Resistiu aos pelos de sovaco, mas doce de buriti era como criptonita para ele. Nem houve tempo de enrolar. Baldeou.

- Moço, o que aconteceu?

- ..., replicou, tentando livrar-se da sacola de doce de buriti, que agora era uma sacola de doce de buriti e café da manhã não digerido.

- Moço, o que aconteceu?

- ...

- Moço, quer ajuda?

- ...

- Moço, fala comigo, ô moço!

Quando tentou falar qualquer coisa, vomitou novamente, jogando a sacola no chão, praticamente a correr para fora do ônibus, não se importando com o motociclista caído no asfalto ou com a multidão de curiosos que ali se encontrava. Voltou para casa a pé, para tomar banho e trocar de roupa. Odiou todas as doceiras de buriti do planeta. Em seu celular tocava agora Karma Police, também do Radiohead, e ele se sentiu no próprio videoclipe, mas ao invés de um carro, fantasiava a empregada de alguém a persegui-lo com uma sacola de doce de buriti na mão.

Entrou em casa tão desesperadamente que esqueceu a chave no lado de fora da porta. Pôs-se a tomar banho e se livrar do cheiro de sovaco de velha, doce de buriti e vômito próprio. Banho a jato. Vestiu-se com as primeiras roupas que encontrou, mas mudou o sapato para o melhor que tinha, pois o anterior encontrava-se imprestável por causa do vômito, mesmo que sua amiga não fosse notá-lo. Teve de pegar um moto-táxi, pois não havia tempo para um outro ônibus nem dinheiro para um táxi com ar-condicionado. Enfim chegou.

- Demorei? (com medo de haver algum piolho no capacete que usara).

- Não, acabei de chegar.

- Vestido muito bonito esse que você está usando!

“Percebo que você caprichou na escolha dos sapatos”, disse ela, deixando escapar o riso por entre os dedos que cobriam a boca. Usava duas alianças prateadas, uma no dedo mínimo e outra no médio, por motivos estéticos. “E, a propósito, isso não é um vestido, é um salopete”.

- ..., com cara de quem acabara de vomitar.

- Um salopete não é a mesma coisa que um vestido, mas você não precisa saber disso. Nem precisa saber a diferença entre um mule e um scarpin. Enfim, quase me atraso para o nosso compromisso, acabei acordando tarde. Por sorte minha, estava na parada de ônibus e uma amiga que passava de carro me ofereceu carona. Para falar a verdade, nunca havia entrado em um carro mais cheiroso. Tocou até Lily Allen no rádio, parecia tudo perfeito!

- ...

- E você, teve dificuldades para chegar aqui?

Antes que ele respondesse, a imagem de seu pesadelo matinal tomava forma, carregando a sacola com barras de doce de buriti e caminhando em sua direção.

- Vamos tomar um café?

- Onde?

- Qualquer lugar, vamos.

E foram, enquanto a empregada doméstica amaldiçoava pelo menos vinte e cinco gerações daquele que vomitou nos doces de sua patroa.