sexta-feira, 4 de junho de 2010

ISTO É UM SALOPETE.

Haviam saído tarde de casa, de lados opostos da cidade. O sol já estava alto, e as axilas dos homens e mulheres em pé no coletivo fediam. Podia até ver as gotas de suor que se recusavam a cair, no meio daqueles pelos crespos de sovaco. “Isso é no que dá ficar até tarde acordado”, pensou. Já era.

Em qualquer lugar do mundo seria esquisito um lugar vazio num ônibus lotado, mas ele resolveu acreditar em sua boa sorte, que acabou quando sentiu a umidade no bolso esquerdo de sua calça comprada na feira da 28, em domingo de promoção. Vômito, xixi de bebê, suco? “Merda de gripe”, reclamou silenciosamente, enquanto tentava conter um espirro. Não conseguia saber no quê havia sentado. Todos no ônibus pareciam rir, e a covardia o incapacitava de olhar ao redor para confirmar sua impressão.

Imaginou uma música da Lily Allen. Imaginou a própria Lily Allen. Sorriu com seu nariz ferido pelos lenços de papel, lembrando do videoclipe. Ergueu um pouco seus olhos e deu de cara com uma senhora de sorriso banguela, que passava para descer na próxima parada. Saíra de casa para um encontro marcado com uma amiga, em cujo conceito gostaria de subir; por isso vestiu sua melhor camisa e sua melhor calça. Sapato, usou qualquer um, pois pensava que mulheres só observam os sapatos de outras mulheres. “Tomara que isso não seja vômito. Ou tomara que ela também esteja gripada”, pensou.

Subitamente o ônibus parou. Nunca sentava na frente ou atrás, sempre no meio, para, no caso de acidentes ou assaltos, não sofrer muitos danos. Cria ser o único com tal opinião. Enganou-se. Uma empregada doméstica partilhava de seu posicionamento. Num momento de distração, o motorista do coletivo atingiu um motociclista e freou abruptamente o veículo. Simultaneamente a empregada caiu. Ajudou-a a se levantar, enquanto retirava do canto direito de sua boca uns três fios de cabelo de axila. “...” Sentia-se tão enojado que até em seu pensamento havia reticências.

- Obrigado por me ajudar, moço.

- ...

Sorriu polidamente, contendo todos os xingamentos de seu vasto vocabulário. Baixou os olhos e tentou se lembrar da Lily Allen. A essa altura até a Joelma serviria. Nada lhe ocorreu, apenas os três fios do sovaco da empregada de alguém, que lhe foram parar na boca. “Isso é no que dá ficar até tarde acordado”, prosseguiu. Abriu o zíper da mochila (que tentava fantasiar ser a boca da empregada) e enfiou sua mão a vasculhar à procura de qualquer coisa que pudesse ler. Era o que lhe faltava. Não havia trazido qualquer livro. Encontrou fones de ouvido e os conectou ao telefone celular. Começou a tocar No surprises, do Radiohead, uma de suas favoritas. Tristíssima. Somada aos recentes acontecimentos, poderia receber como bônus um desavisado cão que urinasse em sua perna. Mas não foi preciso.

- Moço, segura essa sacola pra mim?

- ...

- É que eu to levando uns doce de buriti lá pra onde a muié, e tá pesado, ó.

- ..., respondeu, e pegou a sacola, cujo odor característico o levou a um estado de não menos desespero.

Irônico, Alanis. Muito irônico. De todos os doces existentes na face da terra, aquela senhora (que lhe revelara sua intimidade sovaquiana) portava uma sacola repleta de barras de vômito instantâneo. Resistiu aos pelos de sovaco, mas doce de buriti era como criptonita para ele. Nem houve tempo de enrolar. Baldeou.

- Moço, o que aconteceu?

- ..., replicou, tentando livrar-se da sacola de doce de buriti, que agora era uma sacola de doce de buriti e café da manhã não digerido.

- Moço, o que aconteceu?

- ...

- Moço, quer ajuda?

- ...

- Moço, fala comigo, ô moço!

Quando tentou falar qualquer coisa, vomitou novamente, jogando a sacola no chão, praticamente a correr para fora do ônibus, não se importando com o motociclista caído no asfalto ou com a multidão de curiosos que ali se encontrava. Voltou para casa a pé, para tomar banho e trocar de roupa. Odiou todas as doceiras de buriti do planeta. Em seu celular tocava agora Karma Police, também do Radiohead, e ele se sentiu no próprio videoclipe, mas ao invés de um carro, fantasiava a empregada de alguém a persegui-lo com uma sacola de doce de buriti na mão.

Entrou em casa tão desesperadamente que esqueceu a chave no lado de fora da porta. Pôs-se a tomar banho e se livrar do cheiro de sovaco de velha, doce de buriti e vômito próprio. Banho a jato. Vestiu-se com as primeiras roupas que encontrou, mas mudou o sapato para o melhor que tinha, pois o anterior encontrava-se imprestável por causa do vômito, mesmo que sua amiga não fosse notá-lo. Teve de pegar um moto-táxi, pois não havia tempo para um outro ônibus nem dinheiro para um táxi com ar-condicionado. Enfim chegou.

- Demorei? (com medo de haver algum piolho no capacete que usara).

- Não, acabei de chegar.

- Vestido muito bonito esse que você está usando!

“Percebo que você caprichou na escolha dos sapatos”, disse ela, deixando escapar o riso por entre os dedos que cobriam a boca. Usava duas alianças prateadas, uma no dedo mínimo e outra no médio, por motivos estéticos. “E, a propósito, isso não é um vestido, é um salopete”.

- ..., com cara de quem acabara de vomitar.

- Um salopete não é a mesma coisa que um vestido, mas você não precisa saber disso. Nem precisa saber a diferença entre um mule e um scarpin. Enfim, quase me atraso para o nosso compromisso, acabei acordando tarde. Por sorte minha, estava na parada de ônibus e uma amiga que passava de carro me ofereceu carona. Para falar a verdade, nunca havia entrado em um carro mais cheiroso. Tocou até Lily Allen no rádio, parecia tudo perfeito!

- ...

- E você, teve dificuldades para chegar aqui?

Antes que ele respondesse, a imagem de seu pesadelo matinal tomava forma, carregando a sacola com barras de doce de buriti e caminhando em sua direção.

- Vamos tomar um café?

- Onde?

- Qualquer lugar, vamos.

E foram, enquanto a empregada doméstica amaldiçoava pelo menos vinte e cinco gerações daquele que vomitou nos doces de sua patroa.

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