quinta-feira, 2 de agosto de 2012

SOL E CHUVA NA HORA DO ALMOÇO


            Nada poderia ser mais esquisito do que chuva e sol na hora do almoço. A natureza enlouqueceu, só pode. Nem dá para escrever sobre isso. A necessidade lógica nos leva a pensar em um dia de sol ou em um dia chuvoso. Dia ensolarado com chuva, não dá. Até perdi a fome.

            - Dona Gorete, traz um café com leite, por favor.
            - Já vou!
            - Mais café do que leite, dona Gorete.
            - Tá aqui.
            - Dona Gorete, é a enésima vez que peço mais café do que leite e a senhora me vem com mais leite do que café.
            - Leite é bom.
            - Eu sei, dona Gorete. Agora vai lá e põe mais café nesta caneca, por favor.
           
            Ela saiu entoando uma cantiga esquisita, no mínimo:
           
            - Sol e chuva, casamento de viúva. Chuva e sol, casamento de espanhol. Sol e chuva, casamento de viúva. Chuva e sol, casamento de espanhol.
            - Hã?
            - Sol e chuva, casamento de viúva. Chuva e sol, casamento de espanhol.
            - Dona Gorete, pelamor...
            - O senhor não conhece essa cantiga não?
            - Se já a ouvi, não me recordo.
           
            As crianças brincando na rua pareciam uma assembleia de curicas. Tive de ir fechar a janela – é desleal pedir às crianças que brinquem sem curicar, assim como é desleal passar a infância sem ter pelo menos um balão de hélio. Se eu pudesse baixar um decreto nacional seria este:

            “É DEVER DO ESTADO:

·         Fornecer condições dignas de nascimento a cada brasileiro e brasileira;
·         Proporcionar aos brasileiros e brasileiras a educação bonita dos manuais de pedagogia;
·         Propiciar aos brasileiros e brasileiras professores bem formados, saudáveis na mente e no corpo e remunerados de acordo com o grau de importância de sua atividade profissional, a qual é condição sine qua non para a existência de todas as outras profissões.
·         Fornecer pelo menos um balão de hélio a cada brasileiro e brasileira em idade de brincar;
·         Permitir aos brasileiros e brasileiras em idade de brincar o direito ao uso livre e irrestrito da imaginação.
·         Baixar os preços dos livros e aumentar os preços da cachaça e similares, dos cigarros e das entradas para shows de manifestações artísticas massificadas.

Dê-se ciência e cumpra-se.”

            Retomemos a história: os meninos jogavam bola descalços no asfalto, misturando água de chuva, suor e dribles; os times eram os com camisa e os sem camisa. Duas meninas conversavam mais curicamente do que todas as outras crianças ali presentes. Estavam exatamente abaixo da minha janela, protegendo-se da chuva e do sol. Por uns instantes estiquei o ouvido para ouvir sua conversa:

            - Você sabe por que está chovendo e o céu não está escuro?
            - Minha mãe diz que é São Pedro lavando a casa.
            - Claro que não.
            - Então o que é?
            - A chuva e o sol de vez em quando se encontram para conversar. É normal isso, todo mundo gosta de conversar.
            - E sobre o que será que eles conversam?
            - Eu acho que é sobre as flores e as árvores e o mato. Olha só: eles precisam tanto da água da chuva, quanto do calor do sol para viver. Então a chuva e o sol olham para o seu jardim que é o mundo todinho, deste tamanhão assim (ao falar, esticou os braços o máximo que pôde) e começam a conversar sobre o que o jardim precisa para ficar mais bonito.
            - E do que será?
            - Chuva e sol.
            - E a terra?
            - Também. Já viu alguma planta crescer no asfalto?

            A conversa deve ter continuado por muitos minutos após o fechamento da janela. Voltei para a caneca de café com leite, convencido de que o que é bonito não precisa ser lógico ou ilógico, verdadeiro ou falso. Pensei também em almoçar, porque as borboletas do jardim voavam freneticamente dentro da minha barriga.