sexta-feira, 28 de maio de 2010

Sobre Alices

Quando árvores soltam suas folhas como livros antigos de algum dono descuidado, e quando as pessoas tentar empreender o quebrar das máscaras recebidas ainda na infância, algo como que a dor de perder uma moeda de estacionamento produz um pequeno vazio.

Era nisso que pensava quando chegou na sua casa. Saca o celular-duelo-do-velho-oeste.Telefona para ela.

- Estou aqui fora.

- Já estou indo.

- Desculpe a demora. Precisei passar no trabalho para entregar alguns flash drivers com arquivos que prometi para algumas pessoas de lá.

- Sem problema, entra aí.

- Música?

- Sim, mas perdi mais da metade do que tinha quando mandei o computador pra manutenção.

Naquele momento a música da vez na playlist era Times Like These, do Jack Johnson. Não conseguia parar de pensar naquele vazio. Um pequeno vazio como fome de fast-food.

- Então, trouxe o filme?

- Sim, trouxe.

- Trouxe também um outro, meio que de ficção científica. Creio que gostará.

- Antes de você chegar eu estava aqui pensando sobre toda essa loucura que está o mundo da arte hoje em dia, sobretudo nos filmes. Não sei se sou antiquada ou brega, mas observo que os efeitos especiais têm cada vez mais deixado de lado a interpretação.

- Isso é uma tendência mais velha do que você possa imaginar. Mais velha do que a minha idade e a sua somadas e multiplicadas por dois. Não importa se é bonito ou feio, mas se é famoso. Se for conhecido por todo mundo, é um mandamento gostar daquilo também. Eu e você estamos no meio disso.

- Já imaginava. Agora tudo é 3D. “Três dê pra cá, três dê pra lá” e ainda mudam as histórias para as tornarem mais comerciais. Foi assim com Tróia, com Alice no país das maravilhas, pelo que me lembro, e também com...

Enquanto ela divagava em segundo plano sobre cinema e terceiras dimensões, o rapaz continuava a pensar sobre o vazio que sentia. Máscaras indissolúveis. E quando se tenta retirar, como diria Pessoa, elas já estão pegadas à cara. Cada um recebe sua máscara para usar e ser igual a todo mundo. Um veloz carnaval do mais do mesmo. Podia visualizar até mesmo nas crianças pequenas o mesmo rosto, nas meninas a Pucca® e nos meninos Ben 10®. Nos adultos tudo mudava tão rápido que não conseguia identificar.

- Tá me ouvindo?

- Tô sim.

- E o que você acha?

- Concordo com você (disse irresponsavelmente, tentando resgatar de seu arquivo de paginação o que a moça lhe havia dito).

- Estou tão empolgada de encontrar alguém que me compreenda! Quer café? Mas o meu café é amargo, pois não gosto de açúcar. Açúcar engorda.

- Sem problema, gosto de café, de qualquer jeito.

Quando levou a caneca à boca esperando o “café amargo” que ela lhe havia prometido, ele não era realmente amargo, só estava com pouco açúcar. Já se preparava para não fazer cara feia e parecer desagradável, mas se surpreendeu. Era delicioso. A tia da moça o havia torrado e moído artesanalmente. Lembrou de quando passou por Bujaru e tomou um café parecido na balsa. Lembrou até da música que ouvia naquele momento de travessia: Hoje eu quero sair só. Lembrou até da lua que chamava Lenine para ir à rua. Tudo isso em poucos segundos, enquanto à sua língua era transmitido o mundo naquele gole de café.

- Não está amargo. Está muito bom.

- Obrigada (disse ela em um tom particularmente formal, erguendo os arcos de seus olhos jocosamente).

- Olha, 59%.

- Quer copiar alguma coisa para você?

- Quero.

- Pode escolher.

- Surpreenda-me. Vou para fora da casa enquanto você transfere os arquivos.

O que fazer, então? Seguir sua vida ou seguir vidas? Inventar ou reiventar-se? Descobrir o novo nos outros ou em si mesmo? Ou descobrir a si mesmo nos outros? Talvez usar uma camisa preta de mangas compridas no calor, ou simplesmente tomar café com pouco açúcar. Ou ainda olhar no espelho e ver no reflexo movimentos que você nunca faria. Pelo menos na frente dos outros não.

Não sabia ao certo. O preá era praticamente todo branco. Apenas perto do focinho, no lado direito, possuía pelos que eram de um negro-noite. Ele nasceu assim. Mas pessoas não nasciam com todos aqueles códigos de barra. Passou correndo e entrou na casa, sem nada pensar. Em nada pensava. Não pensava. As pessoas não eram muito diferentes daquele pequeno preá. “Pronto! Quero que você escute uma coisa antes de ir”, disse ela.

Ele entrou na casa novamente. Ao passar pela geladeira olhou a si mesmo na porta e não se reconheceu. Isso não o surpreendeu. Seguiu em frente, lembrando do principal motivo de estar ali. Sentou-se como operador principal daquela estação, abriu um novo documento de texto e se pôs a escrever de modo que ela lesse.

- Não consigo parar de pensar em você. E “é só pensar em você que muda o dia”. Meu dia muda mil vezes, numa roda que gira no mesmo lugar. Gira que me deixa tonto, algum roedor no roda-a-roda. Te achei um caco de vidro na areia da praia ao sol do meio-dia. Cortei meu pé e sangrei para encontrar o caminho de volta até o teu sorriso. Fiz disso o meu mapa particular. Tudo para te ver: eu sou afogado pelo pensar em ti, preso no meio de vírgulas e mais vírgulas de um texto que nunca acaba. E quando penso em ti, penso simultaneamente em duas mil maneiras de em ti pensar novamente, meu holograma pessoal.

- ...

- Isso te incomoda?

Ela balançou a cabeça afirmativamente, mas justificou que, quando as coisas que incomodam são menores do que as coisas que não incomodam, isso não faz muita diferença, e que ele era bem-vindo sempre para tomar café e falar sobre cinema ou arte em geral e ouvir música também. Escutava atentamente, pensando em mais quatro coisas ao mesmo tempo, aquela seria a quinta.

Pensava tudo isso sentado diante do monitor da casa dela, ouvindo agora Goodbye to romance, e suando. E atrasado para fazer um depósito bancário. Mas não se importava com isso. Por mais que o constante nela pensar a incomodasse tal como pedra no chinelo de dedo, que se balança para que caia, era inevitável. Chuva prenunciada por besouros agourentos (“se for bom tu traz, se for ruim tu leva). Roupas estendidas no varal, erguido em ripas antigas envergadas, já quase alcançadas pelo mato, que cresce, reclamando as roupas para si. E ele não poderia parar de nela pensar. Mas seguiu em frente, pois era quase meio dia.

Era quase meio dia.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

A terceira asa invisível

                Dançava muito. Encarava a vida como uma coreografia. Quando corria, parecia uma bailarina. Quando subia escadas, parecia interpretar os movimentos para uma platéia, e  quando dançava de fato, parecia voar na terceira asa de uma borboleta multicor. Tudo era palco seu, não importando as horas e as convenções. Mas não era vulgar. Era tímida.
                Os cabelos lisos que caíam por sobre o rosto eram semi-cortinas para seus olhos negros, que jamais se mostravam a qualquer um. As janelas de sua alma só se abriam para alguém de fato interessante. E discreto. Pessoas tímidas amam pessoas discretas. Não mostram seu mundo a qualquer um.
                E foi assim com ele. Ela sabia desde o início que poderia ciceroneá-lo pelas alamedas de seu desejo. Ele sempre a via, mas fingia não vê-la, para que o casulo eclodisse por completo, pois há pouco ela deixara de ser lagarta. O tempo se encarregaria de amadurecê-la para receber a primeira flor de seu jardim particular. Borboletas vêm às plantas, e não as plantas às borboletas, e assim ocorreu.               Ela o chamou. Falou-lhe sobre o fluxo da poesia e sobre flores e borboletas. Ouviu-a atentamente, sempre mantendo a conexão com seus olhos negros, que eram como ímãs.
                O ar em volta dos dois era uma pauta, em cujas linhas alguma melodia inaudível fora escrita, e os envolvia, cinco cordas e seus sinais em volta de duas pessoas, mulher e homem. Ele reclamou de seu próprio corpo que, embora não fosse senil, era mau-acostumado e preguiçoso, porque lia inclusive o mundo. Ela respondeu com metáforas do solo. Sugeriu que ele dissesse então coisas sobre o chão e o céu no surgimento de tudo, e que ignorasse o tempo e os irmãos do tempo, e se concentrasse em borboletas e flautas de acrílico.
                Seguiram os dois, ignorando o tempo e seus irmãos, a bailarina e o flautista que fingia ser músico de minuto, enquanto as pessoas do lado de fora eram como autômatos, seguindo as linhas de comando de suas vidas desinteressantes.
                E música não cessaria tão rapidamente. 

domingo, 16 de maio de 2010

Rápida memória de uma prova

                Três ventiladores necessitando de manutenção, cantando incessantemente. Calor. Muitas pessoas reunidas no mesmo lugar, o que piorava a sensação térmica. Substituía seu amigo professor. A memória da dor de ouvido da noite anterior perturbava-o. Indagava-se se voltaria a doer. Tentou comparar dor de ouvido a dor de dente, mas não identificou quem doía mais. Pior seriam as duas juntas, falou a si mesmo, com um sorriso sem graça. Tudo lhe chamava a atenção, exceto a prova. Até o momento em que a viu.
                Seus cabelos vermelhos pareciam recentemente tingidos, já que neles tudo era vivo, à semelhança de uma bijuteria escarlate: embora sabido não-natural, admira-se, como a um pôr-do-sol na estrada. A presilha era uma borboleta estilizada, algo de uma filha de mãe zelosa. Os minutos da prova de matemática avançavam, enquanto lápis e borracha duelavam na página de questões, conferindo cuidadosamente forma a seu pensamento. Por um instante ela se debruçou sobre seu atual trabalho e pensou em rosas e em borboletas. E também em formigas. Lápis no chão e sem ponta.
 Professor, aponta para mim?
– “Pronto. Mas não sou professor”.
                Ambos retornam a seus ofícios, enquanto os três ventiladores da sala sussurram seu contínuo e inimitável mantra.

sábado, 1 de maio de 2010

FONES DE OUVIDO BRANCOS

Há quem diga que coletes estão fora de moda há tempos, e alguns que consideram isso ponto pacífico. E quem disse que ela se importava com isso? Trajava um short preto que revelava boa parte de suas pernas morenas, e um colete bege de um provável brim sobre a camiseta branca a qual revelava a forma do sutiã de alguma marca famosa. Quando a vi, caminhava talvez indo a alguma universidade, e ouvia música.
 
Obviamente roí-me de curiosidade sobre o tipo de som emitido pelos fones brancos que ela usava. “Quem cantava ali e o que cantava?”, pensei. Pensei tão alto que incomodei uma senhora gorda, próxima a mim sentada, esperando o ônibus. Segui-a (não a gorda, mas a moça com seus fones brancos). Não resisti.
 
Encontrou uma amiga, que pareceu desinteressante a nós dois, pois apenas um dos fones de ouvido fora retirado anunciando que a conversa seria breve. Parei. Não poderia prosseguir, a perderia de vista, pois não tenho olhos nas costas (não, não, chega de bizarrices). Maldita urbanização desordenada que retira todas as árvores de todos os lugares! Não havia sequer um pé de chicória atrás do qual pudesse me esconder, então suei frio. Trinta segundos de um pânico tetradestilado. Engoli a seco o que me pareceu um punhado de areia. Quase engoli a língua lerdamente.
 
Olharam para mim (gelei). Falaram algo (sobre mim?). “Com licença, sabem me dizer se há alguma farmácia por aqui por perto?”. Chance! Falei propositalmente para não ser ouvido, despertando aquela expressão de “hã?” por parte das duas. Aproximei-me descaradamente. As sobrancelhas eram desenhadas à pinça, finas, mas denunciavam uma rotina estressante de sua portadora, pois os pelos extirpados renasciam visivelmente. E eram espessos. Registro que não era sinal de desleixo, mas de pura falta de tempo. As sobrancelhas da amiga? Não descreverei, mas eram feias.
 
“Há alguma farmácia por aqui?”, perguntei, quase cara-a-cara. “Sim, estamos em frente dela, só olhar”. Era como ver um outro de mim, porém sarcástico, a rir da minha desgraça ao modo fast-food, erguendo o polegar da mão direita como dissesse “beleza, campeão!”. Educadamente, agradeci, entrei na farmácia para nada comprar e disfarçar a vergonha da menos perfeita estratégia de aproximação de mulheres já inventada em toda a humanidade. Poderia escrever um livro sobre isso: “As cantadas mais inúteis da humanidade”.
 
Olho no peixe e outro no gato, quase desenvolvi um estrabismo instantâneo, fingindo procurar um sabonete de higiene íntima masculina, ao mesmo tempo monitorando a partida da moça de colete bege e fones de ouvido brancos, que também usava uma sandália rasteira. Finalmente partiram. Cada uma para um lado. Nada comprei na farmácia e ainda derrubei, ao sair, alguns pacotes de fraldas descartáveis, embora tentasse disfarçar que estava com pressa.
 
A lembrança do outro de mim que ria da desgraça não tão alheia incomodava-me. Era como cólicas de uma diarréia teimosa. Ao mesmo tempo queria urinar. Reclamei silenciosamente de ter uma bexiga tão pequena, que insiste em desafiar minha autoridade de soberano deste corpo. “Sou o mestre da minha bexiga”, afirmei (eu te entendo, Dr. Cooper) ao tentar evitar o inevitável.
 
E por falar em corpo, não sou um exemplo de sex appeal. Magro e alto. Pareço uma vassoura sem piaçava. Cabelos crespos, que tentei deixar crescer várias vezes (sempre desisti quando me tornava um cotonete ambulante), agora cortados como os de uma criança a qual a mãe tenta livrar de uma infestação de piolhos. No auge dos meus dezoito anos, treino para conquistar alguns corações femininos. Calma, calma. A moça começou a andar mais rapidamente (por imaginar que sou um ladrão talvez, mas não ofereço ameaça, coitado de mim).
 
Creio que andou mais rápido para compensar o tempo perdido com sua amiga desinteressante. Parou no sinal. Alcancei-a. Parei ao sinal ao seu lado. A mão vermelha me dizia “pare”, mas obediência nunca foi meu forte.
 
– Nem tive tempo de agradecer por me indicar o tão complicado caminho para a farmácia.
– Hã?.
– NEM TIVE TEMPO DE AGRADECER POR ME INDICAR O TÃO COMPLICADO CAMINHO PARA A FARMÁCIA
– Não precisa gritar, eu dei pausa aqui pra poder te ouvir
 
O outro de mim sorria do lado oposto da faixa de pedestres, sobretudo do timbre da minha voz. Invejo o Elvis Presley e o Cid Moreira. “De nada”, sorriu quase que laconicamente exibindo as borrachinhas cor-de-rosa de seu aparelho ortodôntico. Aproveitei para perguntar-lhe seu nome. “Nome lindo, é o da minha mãe”, menti. A mão vermelha deu lugar a uma pessoinha verde, quem sabe de marte? Marciana mesmo é a mão vermelha, que raiva.
 
– Indo pra onde?
– Hã?
– INDO PRA ONDE?
– Dei pausa de novo (e sorriu, mostrando suas borrachinhas cor-de-rosa)
– Desculpe. (O outro de mim mostrava um espelho, e eu estava amarelo-casca-de-banana)
– Estou indo pra aula.
 
Eu não disse? Ela estava indo para a aula! Naquele momento descortinou-se diante de mim um emaranhado de caminhos românticos que poderia seguir, pois minha percepção da alma feminina estava mais aguçada do que nunca. Eu era o melhor! E aos dezoito anos! O outro de mim saiu cabisbaixo, tal qual um cachorro que duas crianças impediram de fazer cocô na rua ao unirem seus dedos indicadores e puxarem com toda a sua força, e saiu para fazer bagunça em outro lugar. Sempre tomei como verdadeiro tal ritual. Em cem vezes, cem funcionavam, exceto se o cachorro estivesse com infecção intestinal, ao ter comido alguma carniça por aí.
 
– Na verdade preciso ser honesto, te segui esse tempo todo.
– Eu sei.
– Me empresta um lado do seu fone pra eu ouvir o que você está ouvindo?
– Não.
 
Eu disse que em cem vezes, cem funcionavam. Essa deve ser a centésima primeira. Sigo meu caminho, sem saber que músicas ouvia aquela garota no seu fone de ouvido branco, comprado no camelô em alguma praça da cidade. Ainda disse que tinha o nome da minha mãe. Minha mãe não teria um nome ridículo daqueles. Continuo sem saber o que ela estava ouvindo, mas um dia saberei, espero. Enquanto isso, uma garota passa de macacão vermelho e mochila nas costas perto de mim. E com fones de ouvido também. Preciso urinar.
 
Acho que urinei.