quarta-feira, 28 de julho de 2010

Com 16 anos

Era uma daquelas pessoas que se sentiam totalmente sem atrativos perante os olhares alheios. Depois de um longo período mergulhada nas paredes espessas da tristeza, sua alma doía de tanta felicidade, tal como quem come muito depois de ter passado fome. Era tudo muito confuso. Olhava para as traças e rabiscos da parede, evitando os olhos de seu pretendente.

- Mas você me ama mesmo? Tem certeza?

- É a única certeza que tenho.

- Mas não te mereço.

- Merece.

- Não, não mereço, nem sei quem sou.

- E quem sabe?

- Não sei, estou com medo.

- Medo de amar?

- Medo de que alguém me ame. Ninguém me amou antes. E se eu não te amar? Não quero me sentir obrigada a amar só porque sou amada pela primeira vez. Amar por obrigação estragaria o amor.

- Não se sinta obrigada a me amar, mas deixe que te ame.

- Não sei, vou pensar. Me dá uma semana?

- Tudo bem, meu doce, você é quem sabe. Te esperarei sempre. Tanto que te chamo de “meu doce”. É a primeira pessoa que chamo assim.

Ela sorriu tímida, exibindo apenas as gengivas para aquele rapaz que conhecera na fila do banco, horas atrás. As gengivas eram maiores do que os dentes. “Tchau”, despediu-se a estreante nos caminhos do amor. “Até, logo, meu doce”.

- Alô? – atende uma voz feminina.

- Olá, meu doce. Nos conhecemos hoje cedo, na padaria. Não sei explicar, mas acabei de descobrir que te amo. Uma prova disso é que te chamo de “meu doce”, coisa que nunca fiz com ninguém. Podemos nos encontrar pessoalmente, para eu olhar nos teus olhos, mesmo que seja pela última vez?

- Claro! – respondeu a voz feminina, demonstrando a euforia das folhas de erva cidreira nascendo em locais de muita água – me encontre na mesma padaria daqui a vinte minutos.

E o mentiroso seguiu, plantando sorrisos nos rostos de mulheres que considerava feias.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

AUGUSTO E CÉSAR

Augusto e César já haviam perdido a conta de quantos anos se passaram desde que se tornaram amigos. Eram dois homens de mais de trinta anos quando os fatos da presente narrativa ocorreram. Sempre gostaram de boa música e de longas conversas sobre tudo, desde adesivos para carros até a indústria cinematográfica.

Duas notícias puseram uma pequena curva na amizade dos dois: Augusto fora aprovado para um mestrado no Canadá, enquanto César era chamado para assumir efetivamente um cargo público federal. Despediram-se no aeroporto em meio a lágrimas e brindes com água sem gás. Prometeram mandar e-mails todos os dias e apostaram para ver quem casaria primeiro.

César largou na frente, pois já namorava Raquel há mais de dois anos. Raquel era linda como as modelos das propagandas de cerveja, e não precisou de um bisturi sequer para isso. Era também muito religiosa, e insistia muito para que César visitasse sua igreja.

- Vamos lá, não custa nada. É só uma reunião onde iremos conversar sobre temas da atualidade e depois vamos lanchar. Você não conversa tanto com o Augusto?

- Qual o nome da sua igreja?

- Ela não tem nome, não precisa. Não é o letreiro iluminado que identifica a igreja, mas a atitude dos seus membros.

- Hoje não. Não gosto de igreja.

- Acha que eu te convidaria se soubesse que você não iria gostar? A reunião vai ser na minha casa. Prometo te dar uma coisa muito especial quando acabar...

- Promete mesmo?

- Prometo! E você vai gostar muito...

Ele pensou e pensou. “Finalmente, depois de dois anos na seca, vai chover na minha floresta. É só ir para a bendita reunião, e depois música, jantar e sexo! Mas... o que a fez mudar de ideia? Deixa pra lá, o que vale é que vou me dar bem”.

Augusto chegou a Vancouver sentindo muito frio, mas estava empolgado com seu mestrado em educação. Sua vida no Canadá será totalmente previsível, voltada para sua formação, com uma farra aqui ou ali. De resto, voltará a ser citado nesta narrativa quando retornar ao Brasil.

Chegou o dia da reunião. Tomou um demorado banho, melhor do que se fosse sua mãe a lavá-lo. Vestiu cueca nova, meias novas, calça nova e camisas novas. Só os tênis eram os de sempre. E saiu.

Quando chegou à casa de Raquel, esta já o esperava, com seus amigos da igreja. Era um grupo aparentemente muito alegre e democrático. Não se vestiam como pessoas religiosas, nem o olhavam inquisitoriamente. Sentiu-se bem à vontade.

- Boa tarde, me chamo Cordélia Barroso, e sou a mestra deste grupo. Sinta-se em casa.

- Não se preocupe, sempre me sinto em casa, aqui.

O tema da reunião era este: “do que você tem medo?”

A mestra, muito descontraidamente, falou sobre seus medos. Um a um, cada membro falou sobre suas aflições. Enfim, chegou a vez de César. “Tenho medo de passar determinadas noites sozinho”, disse ele, olhando testosteronativamente para Raquel.

Cordélia levantou-se e posicionou sua cadeira de plástico na frente de César. Sentou-se, pegou suas duas mãos, olhou em seus olhos e disse: “alguém está me dizendo que, em breve, você não precisará passar uma noite sequer sozinho”. Você é especial, é precioso, precisa ser livre dos temores dessa vida”.

César não ouviu, sentiu aquelas palavras. Foram como soar de um potente subwoofer em seu peito. Tremeu. Sentiu gotas de suor descerem das sobrancelhas às bochechas. Aquela mulher possuía uma aura estranha, de divindade, ao mesmo tempo que era tão humana. Por uns instantes deixou de saber quem era. Logo voltou a si, com dupla fome. “Vamos comer, pessoal!”, disse a mestra, sem mais nem menos, largando as mãos do rapaz.

Eram cachorros-quentes. Todos comiam e falavam alto, ao passo que César tentava não sujar sua camisa nova com o molho posto em demasia no seu lanche. Inutilmente. Um grão de milho melado com os condimentos caíra na preciosa vestimenta. Cerrou os dentes para que não saísse o palavrão, afinal, estava no meio de religiosos.

Raquel sussurrou no seu ouvido:

- Daqui a pouco termina tudo, e vou te dar o presente.

“Eu sabia, bastava vir pra essa reunião e estava tudo resolvido. Dou uma coisa que ela quer, ela me dá uma coisa que quero. É hoje que eu tiro a libido da miséria!”. Coitado do jovem...

Um rapaz começou a tocar violão e cantar músicas do tipo “Sou apaixonado por Ti, Deus”, “Sou louco por Ti, Deus”, “Sou completamente alucinado por Ti, Deus”, enquanto seus colegas o acompanhavam harmoniosamente. César estava impaciente. “Deus não deixa ninguém doido, nem com alucinações”.

Raquel conversava baixinho com sua mestra, enquanto lavavam a louça. A impaciência do rapaz o levava a bater os pés no chão, agora acompanhando o ritmo da música. “Por que esse povo não vai embora?”.

Sem perceber, já não estava mais aborrecido com eles, de tanto carinho que lhe transmitiam. Era praticamente a sua família. Só precisavam ir embora, para que ele ganhasse a sua recompensa.

A cantoria para. A mestra pede a palavra.

- Hoje nosso amigo César ganhará um presente especial, dado diretamente pela nossa irmã Raquel. Pode entregar a ele. “Este grupo é tão democrático assim? Minha namorada vai anunciar isso na frente de todo mundo? LOL”

E ela coloca em seu braço uma pulseira, na qual se lia “eu sou uma pessoa especial para os meus irmãos”.

César não acreditava naquilo. No começo, um sorriso amarelo, depois expressão alguma, em seguida o rosto virava um completo “fuuu”. Fizeram um montinho para abraçá-lo, gritando “só falta tomar a sua decisão!”. Chama Raquel a um canto.

- Que merda é essa?

- É o seu presente. Não disse que ia gostar?

- Uma pulseirinha cor-de-rosa é o meu presente?

- Não é só uma pulseira. É um transmissor de reserva de poder espiritual.

- Transmissor de que?

- Use-a por cento e vinte dias e você receberá uma benção especial. Você tá vendo a alegria dos nossos irmãos? Pois é, tudo isso é por causa da reserva de poder espiritual que ganhamos. Você não quer ser feliz? Tudo o que tem a fazer é usar a pulseira.

- Vou embora. Informação demais para a minha cabeça. Decisão...

O rapaz, muito contrariado (epic fail) dirige-se à porta.

- Já vai? Tem certeza que não quer tomar sua decisão hoje?

Bateu a porta atrás de si e saiu. Minutos depois recebeu um SMS de Raquel:

VOCÊ ME FEZ PASSAR VERGONHA DIANTE DA MINHA MESTRA. ELA DISSE QUE VOCÊ NÃO SERVE PARA NAMORAR COMIGO E EU CONCORDEI. ADEUS.

Telefona imediatamente para sua namorada:

- Alô.

- Oi, aqui quem fala é a Cordélia.

- Passa o telefone para a Raquel.

- Não, se quiser falar algo, fale comigo, que sou sua mestra.

- Passa o telefone para a Raquel, sua FANÁTICA DE MERDA!

- Não vou passar. Você é um empecilho na caminhada espiritual da moça, será que não percebe isso? Eu tive o maior trabalho para fazê-la entender que precisava jogar fora tudo aquilo que não a edificava espiritualmente e você quer desfazer tudo? Ela jogou fora os CDs, DVDs e livros que não falavam do nosso Deus. Só faltava jogar fora você, e Deus criou a situação perfeita para que ela entendesse isso.

- Então você ORDENOU que ela terminasse comigo?

- Fui apenas um instrumento nas mãos de Deus. Agora ela está finalmente livre, para namorar e casar com um jovem da nossa igreja, seu ímpio. Ela já está predestinada a se casar com o irmão Dejalmir. Nossa profetiza já havia revelado isso.

- Peraí, jogou fora todos os livros, inclusive os que foram presentes meus? Vai se casar com o irmão quem?

- Sim. Essa semana ela fez isso. Agora está totalmente voltada para Deus.

- Ok, vou desligar. Não tem diálogo com você.

“Que Deus te liberte desses demônios”, sussurrou Cordélia Barroso, após desligar o telefone.

- Então, ele aceitou?, perguntou Raquel.

- Os demônios fizeram-no ter um ataque de ira.

- Coitado...

- Mas sorria, ele não te importunará mais.

- Será que fiz a coisa certa?

- Claro, meu bem! Você é princesa preciosa para Deus. Agora vamos planejar o restante da sua vida.

César tentou ligar de volta algumas vezes, sobretudo porque estava furioso com Cordélia, mas era repetidamente ofendido pela voz mecânica que dizia: “sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens, e estará sujeita a cobrança após o sinal”.

Desde aquele incidente não soube mais notícias de Raquel. Um ano e dez meses depois, foi buscar Augusto no aeroporto.

- Casaste?

- Não, as estrangeiras são muito esquisitas. E tu?

- Também não.

- Tenho uma ótima notícia para te contar: mudei de vida. Conheci um grupo muito alegre de missionários no Canadá, e eles me fizeram ver a verdade.

Mal Augusto terminava a palavra “grupo muito alegre”, César já se dirigia ao estacionamento, para ir embora, com medo do que viria. Dirigiu até o supermercado mais próximo com o intuito de comprar algo para comer. Na fila do caixa, cruza com alguém muito familiar: era Raquel, pálida e muito magra, com os olhos fundos tais como pratos de sopa vazios, praticamente irreconhecível. Segurava um bebê, tão magro quanto ela, que chorava muito.

“Vou fingir que nem vi”, pensou ele. Tarde demais.

- Não fala mais comigo, é?

- Oi, tudo bom?

- Tudo sim, olha a minha camiseta: “encontrei a verdade, sou feliz e mais bonita”. Este é meu bebê, Dejalmir Filho. Eu ia colocar o nome do meu pai, mas a minha mestra disse que não traria crescimento espiritual. E você, já tomou sua decisão?

- Que decisão?

- A de ser feliz como nós.

- ...

- O Dejalmir tava trabalhando perto na tua rua, reformando uma casa, mas sofreu um acidente e está parado agora. A mestra disse que foi falta de fé dele. Concordo com ela. Estamos vivendo do meu serviço.

- ...

- Eu sou empregada doméstica na casa da Cordélia. Estou muito feliz, porque tenho a oportunidade de conseguir mais e mais reserva de poder espiritual com ela. Este já é meu pagamento.

- ...

- Recebi a profecia de que vou ganhar um carro importado, no ano que vem, dependendo do número de aprendizes que eu fizer. Por causa da minha falta de fé eu quase desisti, quando as dificuldades aumentaram. Fui parar no psiquiatra, vê se pode?

- ...

- Ele me disse que a igreja me fazia mal, e quase acreditei. Tomei um monte de remédios controlados para depressão, ansiedade e alucinações, mas voltei a mim e me desculpei com a Cordélia, pela minha fraqueza. Não eram alucinações, era um dom maravilhoso que eu estava recebendo, mas perdi, porque não acreditei. Se a minha fé fosse maior, eu poderia ver o mundo espiritual! Agora, só depois de muita submissão.

-...

- Olha, é a sua vez.

- Não, não, pode passar, que eu pago.

- Obrigada! Dá tchau pro titio César, bebê! Tchau!

César quis pensar sobre tudo aquilo, mas já estava com dor de cabeça. Pagou as compras e foi embora, ouvindo “fake plastic trees” a caminho de casa. A partir daquele dia nunca mais conversou sobre nada com Augusto. Nem sobre adesivos automotivos, nem sobre cinema, muito menos sobre qualquer conceito de felicidade.

terça-feira, 13 de julho de 2010

O MENINO E AS CINZAS

Sob o céu o menino tenta catar as cinzas do que fora mato, do que fora grama, do que fora flor. Sob as telhas quebradas o menino tenta desenhar estrelas no papelão da caixa de detergente em pó.

- Caminha, menino, vai banhar!

- Já vou.

Mas ele não vai, é teimoso. Brinca e tosse ao deixar cair sobre si a neve negra das queimadas que logo serão pastos. Ele nada sabe sobre neve, queimadas ou bois. Mas pensa que neve é algo que cai do céu e não é chuva. Pode ser branca ou preta. Não sendo chuva, é neve.

- Vovó, estão queimando o céu?

- Caminha menino, vai banhar logo, que tua mãe já tá chegando! Pergunta besta... não dá pra queimar o céu!

Diante da tina, tira o calção. Nem sabe por que tosse. Estão queimando o céu? Há cinzas na água também. Há cinzas por todos os lados.

- Vovó, é o apito do trem que faz a cinza cair?

E a avó esfregava o sabão em barra como se quisesse lavar a mente daquele menino de tantas perguntas.

- Não, meu filho, o apito avisa que o trem já vai ou que já vem.

- Então, vovó, quem está queimando o céu?

- Ninguém, menino, agora vai pegar um calção limpo pra vestir.

- Vovó?

- Oi, menino!

- A gente pode chover de baixo pra cima pra molhar o céu?

A senhora pequena, curvada pela força dos anos, esfrega a toalha na cabeça do menino. “Chover de baixo pra cima, só criança pra pensar uma coisa dessas mesmo”.

- Agora vai ver televisão, vai. E não se suja! (vai ver televisão que você não pensa mais na tosse, nem nas cinzas, nem na fome).