Nada
poderia ser mais esquisito do que chuva e sol na hora do almoço. A natureza
enlouqueceu, só pode. Nem dá para escrever sobre isso. A necessidade lógica nos
leva a pensar em um dia de sol ou em um dia chuvoso. Dia ensolarado com chuva,
não dá. Até perdi a fome.
-
Dona Gorete, traz um café com leite, por favor.
-
Já vou!
-
Mais café do que leite, dona Gorete.
-
Tá aqui.
-
Dona Gorete, é a enésima vez que peço mais café do que leite e a senhora me vem
com mais leite do que café.
-
Leite é bom.
-
Eu sei, dona Gorete. Agora vai lá e põe mais café nesta caneca, por favor.
Ela
saiu entoando uma cantiga esquisita, no mínimo:
-
Sol e chuva, casamento de viúva. Chuva e
sol, casamento de espanhol. Sol e chuva, casamento de viúva. Chuva e sol,
casamento de espanhol.
-
Hã?
-
Sol e chuva, casamento de viúva. Chuva e
sol, casamento de espanhol.
-
Dona Gorete, pelamor...
-
O senhor não conhece essa cantiga não?
-
Se já a ouvi, não me recordo.
As
crianças brincando na rua pareciam uma assembleia de curicas. Tive de ir fechar
a janela – é desleal pedir às crianças que brinquem sem curicar, assim como é
desleal passar a infância sem ter pelo menos um balão de hélio. Se eu pudesse
baixar um decreto nacional seria este:
“É
DEVER DO ESTADO:
·
Fornecer condições dignas de
nascimento a cada brasileiro e brasileira;
·
Proporcionar aos brasileiros e
brasileiras a educação bonita dos manuais de pedagogia;
·
Propiciar aos brasileiros e brasileiras
professores bem formados, saudáveis na mente e no corpo e remunerados de acordo
com o grau de importância de sua atividade profissional, a qual é condição sine qua non para a existência de todas
as outras profissões.
·
Fornecer pelo menos um balão de hélio
a cada brasileiro e brasileira em idade de brincar;
·
Permitir aos brasileiros e brasileiras
em idade de brincar o direito ao uso livre e irrestrito da imaginação.
·
Baixar os preços dos livros e aumentar
os preços da cachaça e similares, dos cigarros e das entradas para shows de manifestações
artísticas massificadas.
Dê-se
ciência e cumpra-se.”
Retomemos
a história: os meninos jogavam bola descalços no asfalto, misturando água de
chuva, suor e dribles; os times eram os com
camisa e os sem camisa. Duas meninas
conversavam mais curicamente do que todas as outras crianças ali presentes. Estavam
exatamente abaixo da minha janela, protegendo-se da chuva e do sol. Por uns
instantes estiquei o ouvido para ouvir sua conversa:
-
Você sabe por que está chovendo e o céu não está escuro?
-
Minha mãe diz que é São Pedro lavando a casa.
-
Claro que não.
-
Então o que é?
-
A chuva e o sol de vez em quando se encontram para conversar. É normal isso, todo
mundo gosta de conversar.
-
E sobre o que será que eles conversam?
-
Eu acho que é sobre as flores e as árvores e o mato. Olha só: eles precisam
tanto da água da chuva, quanto do calor do sol para viver. Então a chuva e o
sol olham para o seu jardim que é o mundo todinho, deste tamanhão assim (ao
falar, esticou os braços o máximo que pôde) e começam a conversar sobre o que o
jardim precisa para ficar mais bonito.
-
E do que será?
-
Chuva e sol.
-
E a terra?
-
Também. Já viu alguma planta crescer no asfalto?
A
conversa deve ter continuado por muitos minutos após o fechamento da janela. Voltei
para a caneca de café com leite, convencido de que o que é bonito não precisa
ser lógico ou ilógico, verdadeiro ou falso. Pensei também em almoçar, porque as
borboletas do jardim voavam freneticamente dentro da minha barriga.