quarta-feira, 26 de maio de 2010

A terceira asa invisível

                Dançava muito. Encarava a vida como uma coreografia. Quando corria, parecia uma bailarina. Quando subia escadas, parecia interpretar os movimentos para uma platéia, e  quando dançava de fato, parecia voar na terceira asa de uma borboleta multicor. Tudo era palco seu, não importando as horas e as convenções. Mas não era vulgar. Era tímida.
                Os cabelos lisos que caíam por sobre o rosto eram semi-cortinas para seus olhos negros, que jamais se mostravam a qualquer um. As janelas de sua alma só se abriam para alguém de fato interessante. E discreto. Pessoas tímidas amam pessoas discretas. Não mostram seu mundo a qualquer um.
                E foi assim com ele. Ela sabia desde o início que poderia ciceroneá-lo pelas alamedas de seu desejo. Ele sempre a via, mas fingia não vê-la, para que o casulo eclodisse por completo, pois há pouco ela deixara de ser lagarta. O tempo se encarregaria de amadurecê-la para receber a primeira flor de seu jardim particular. Borboletas vêm às plantas, e não as plantas às borboletas, e assim ocorreu.               Ela o chamou. Falou-lhe sobre o fluxo da poesia e sobre flores e borboletas. Ouviu-a atentamente, sempre mantendo a conexão com seus olhos negros, que eram como ímãs.
                O ar em volta dos dois era uma pauta, em cujas linhas alguma melodia inaudível fora escrita, e os envolvia, cinco cordas e seus sinais em volta de duas pessoas, mulher e homem. Ele reclamou de seu próprio corpo que, embora não fosse senil, era mau-acostumado e preguiçoso, porque lia inclusive o mundo. Ela respondeu com metáforas do solo. Sugeriu que ele dissesse então coisas sobre o chão e o céu no surgimento de tudo, e que ignorasse o tempo e os irmãos do tempo, e se concentrasse em borboletas e flautas de acrílico.
                Seguiram os dois, ignorando o tempo e seus irmãos, a bailarina e o flautista que fingia ser músico de minuto, enquanto as pessoas do lado de fora eram como autômatos, seguindo as linhas de comando de suas vidas desinteressantes.
                E música não cessaria tão rapidamente. 

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