sábado, 1 de maio de 2010

FONES DE OUVIDO BRANCOS

Há quem diga que coletes estão fora de moda há tempos, e alguns que consideram isso ponto pacífico. E quem disse que ela se importava com isso? Trajava um short preto que revelava boa parte de suas pernas morenas, e um colete bege de um provável brim sobre a camiseta branca a qual revelava a forma do sutiã de alguma marca famosa. Quando a vi, caminhava talvez indo a alguma universidade, e ouvia música.
 
Obviamente roí-me de curiosidade sobre o tipo de som emitido pelos fones brancos que ela usava. “Quem cantava ali e o que cantava?”, pensei. Pensei tão alto que incomodei uma senhora gorda, próxima a mim sentada, esperando o ônibus. Segui-a (não a gorda, mas a moça com seus fones brancos). Não resisti.
 
Encontrou uma amiga, que pareceu desinteressante a nós dois, pois apenas um dos fones de ouvido fora retirado anunciando que a conversa seria breve. Parei. Não poderia prosseguir, a perderia de vista, pois não tenho olhos nas costas (não, não, chega de bizarrices). Maldita urbanização desordenada que retira todas as árvores de todos os lugares! Não havia sequer um pé de chicória atrás do qual pudesse me esconder, então suei frio. Trinta segundos de um pânico tetradestilado. Engoli a seco o que me pareceu um punhado de areia. Quase engoli a língua lerdamente.
 
Olharam para mim (gelei). Falaram algo (sobre mim?). “Com licença, sabem me dizer se há alguma farmácia por aqui por perto?”. Chance! Falei propositalmente para não ser ouvido, despertando aquela expressão de “hã?” por parte das duas. Aproximei-me descaradamente. As sobrancelhas eram desenhadas à pinça, finas, mas denunciavam uma rotina estressante de sua portadora, pois os pelos extirpados renasciam visivelmente. E eram espessos. Registro que não era sinal de desleixo, mas de pura falta de tempo. As sobrancelhas da amiga? Não descreverei, mas eram feias.
 
“Há alguma farmácia por aqui?”, perguntei, quase cara-a-cara. “Sim, estamos em frente dela, só olhar”. Era como ver um outro de mim, porém sarcástico, a rir da minha desgraça ao modo fast-food, erguendo o polegar da mão direita como dissesse “beleza, campeão!”. Educadamente, agradeci, entrei na farmácia para nada comprar e disfarçar a vergonha da menos perfeita estratégia de aproximação de mulheres já inventada em toda a humanidade. Poderia escrever um livro sobre isso: “As cantadas mais inúteis da humanidade”.
 
Olho no peixe e outro no gato, quase desenvolvi um estrabismo instantâneo, fingindo procurar um sabonete de higiene íntima masculina, ao mesmo tempo monitorando a partida da moça de colete bege e fones de ouvido brancos, que também usava uma sandália rasteira. Finalmente partiram. Cada uma para um lado. Nada comprei na farmácia e ainda derrubei, ao sair, alguns pacotes de fraldas descartáveis, embora tentasse disfarçar que estava com pressa.
 
A lembrança do outro de mim que ria da desgraça não tão alheia incomodava-me. Era como cólicas de uma diarréia teimosa. Ao mesmo tempo queria urinar. Reclamei silenciosamente de ter uma bexiga tão pequena, que insiste em desafiar minha autoridade de soberano deste corpo. “Sou o mestre da minha bexiga”, afirmei (eu te entendo, Dr. Cooper) ao tentar evitar o inevitável.
 
E por falar em corpo, não sou um exemplo de sex appeal. Magro e alto. Pareço uma vassoura sem piaçava. Cabelos crespos, que tentei deixar crescer várias vezes (sempre desisti quando me tornava um cotonete ambulante), agora cortados como os de uma criança a qual a mãe tenta livrar de uma infestação de piolhos. No auge dos meus dezoito anos, treino para conquistar alguns corações femininos. Calma, calma. A moça começou a andar mais rapidamente (por imaginar que sou um ladrão talvez, mas não ofereço ameaça, coitado de mim).
 
Creio que andou mais rápido para compensar o tempo perdido com sua amiga desinteressante. Parou no sinal. Alcancei-a. Parei ao sinal ao seu lado. A mão vermelha me dizia “pare”, mas obediência nunca foi meu forte.
 
– Nem tive tempo de agradecer por me indicar o tão complicado caminho para a farmácia.
– Hã?.
– NEM TIVE TEMPO DE AGRADECER POR ME INDICAR O TÃO COMPLICADO CAMINHO PARA A FARMÁCIA
– Não precisa gritar, eu dei pausa aqui pra poder te ouvir
 
O outro de mim sorria do lado oposto da faixa de pedestres, sobretudo do timbre da minha voz. Invejo o Elvis Presley e o Cid Moreira. “De nada”, sorriu quase que laconicamente exibindo as borrachinhas cor-de-rosa de seu aparelho ortodôntico. Aproveitei para perguntar-lhe seu nome. “Nome lindo, é o da minha mãe”, menti. A mão vermelha deu lugar a uma pessoinha verde, quem sabe de marte? Marciana mesmo é a mão vermelha, que raiva.
 
– Indo pra onde?
– Hã?
– INDO PRA ONDE?
– Dei pausa de novo (e sorriu, mostrando suas borrachinhas cor-de-rosa)
– Desculpe. (O outro de mim mostrava um espelho, e eu estava amarelo-casca-de-banana)
– Estou indo pra aula.
 
Eu não disse? Ela estava indo para a aula! Naquele momento descortinou-se diante de mim um emaranhado de caminhos românticos que poderia seguir, pois minha percepção da alma feminina estava mais aguçada do que nunca. Eu era o melhor! E aos dezoito anos! O outro de mim saiu cabisbaixo, tal qual um cachorro que duas crianças impediram de fazer cocô na rua ao unirem seus dedos indicadores e puxarem com toda a sua força, e saiu para fazer bagunça em outro lugar. Sempre tomei como verdadeiro tal ritual. Em cem vezes, cem funcionavam, exceto se o cachorro estivesse com infecção intestinal, ao ter comido alguma carniça por aí.
 
– Na verdade preciso ser honesto, te segui esse tempo todo.
– Eu sei.
– Me empresta um lado do seu fone pra eu ouvir o que você está ouvindo?
– Não.
 
Eu disse que em cem vezes, cem funcionavam. Essa deve ser a centésima primeira. Sigo meu caminho, sem saber que músicas ouvia aquela garota no seu fone de ouvido branco, comprado no camelô em alguma praça da cidade. Ainda disse que tinha o nome da minha mãe. Minha mãe não teria um nome ridículo daqueles. Continuo sem saber o que ela estava ouvindo, mas um dia saberei, espero. Enquanto isso, uma garota passa de macacão vermelho e mochila nas costas perto de mim. E com fones de ouvido também. Preciso urinar.
 
Acho que urinei.

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