domingo, 27 de junho de 2010

SOBRE CLÁUDIAS E CORAÇÕES.

I

            Desde pequeno, Walffrido Ricarte é um ótimo desenhista. Nada escapa aos seus olhos. Se fosse um poeta, seria parnasiano com cem por cento de acerto. Mais do que pouca luminosidade, detestava filas de qualquer espécie. Filas de banco, de farmácia, de hospital, de cartórios, e outras filas. Engarrafamentos para ele eram o inferno na terra.. Aterrorizou-se quando tomou ciência de que necessitava autenticar cópias de seus documentos no cartório de segundo ofício de notas, na ocasião de ser aprovado em concurso público. Suou frio. Fantasiou todos os improváveis eventos desastrosos que poderiam ocorrer naquela infame fila.

            Arrumou suas coisas e saiu, mas voltou na mesma pisada para pegar também seu material de desenho. Sentia-se mais seguro levando consigo seu mundo, que era um conjunto composto de seus olhos, mãos, lápis e papéis em branco, onde pudesse desenhar. Desenhar sempre o acalmava, não importando onde estivesse. Chegou a desenhar na travessia para Alcântara: todos enjoando ao seu redor, mas ele se manteve impassível, tal como um aficionado por meditar em posição de lótus, rabiscando a orla de São Luís, que desaparecia pouco a pouco enquanto se distanciava o barco. Depois rabiscou jangadeiros e redes de pesca, e o trapiche onde aportaria.

 

II

 

            Entrou no cartório, olhou para todas as pessoas ao redor, sentindo-se tonto foi em direção ao dispositivo de onde retiraria a sua senha, pegou-a e se sentou na primeira cadeira vaga que viu em sua frente, curvando-se para acomodar a mochila no chão, próxima aos seus pés. Não conseguiu levantar a cabeça. Era como o capacete do Juggernaut, de tão pesada. Decidiu abrir o zíper para retirar o primeiro lápis que viesse à mão e uma das folhas de alta gramatura que sempre carregava.

            Como Ali se levantaria, ali levantou seus olhos lentamente, olhando para todos os guichês, a procurar onde seria atendido. Sua senha era a trezentos e cinqüenta e nove, e a tela de cristal líquido exibia ainda a de número trezentos e quarenta e dois. Enfiou a mão na mochila novamente e tirou o maior número de páginas que conseguiu alcançar.

             Não lembra ao certo do guichê, pois é péssimo com números, lembrando apenas de que era o penúltimo, nele escrito “casamentos, nascimentos e óbitos”. Olhou para essas três palavras algumas vezes, sem encarar a pessoa que estava detrás do balcão. Começava a chover; velozmente o lápis se punha a coçar o papel, descrevendo as gotas que caíam nas folhas empoeiradas. Não chovia há vinte e sete dias. Alguém pisa no seu pé. Tenta segurar a dor pressionando o lápis no papel, quando sua ponta. Irritou-se mais pela ponta quebrada do lápis do que pelo pisão. Quem seria o filho de uma égua autor de tamanha atrocidade?

 

- ALÔ! ALÔ! TÁ ME OUVINDO AGORA? E AGORA? HÃ? JÁ, JÁ ESTOU AQUI SIM! CLARO QUE TROUXE! DEIXA EU VER AQUI! OI? TÁ AÍ AINDA? HÃ? TÁ TUDO AQUI SIM! TÁ, TCHAU! BORA ASSISTIR O JOGO AMANHÃ, SIM! TCHAU!

 

            Se alguma coisa faltava para Walffrido acatar como verdades universais todas as teses componentes das leis de Murphy, era alguém gritar no seu ouvido, combinando assistir ao jogo de futebol no dia seguinte com aquele sotaque irritante universal de boleiro. Agora não faltava mais nada. Correção: faltava um apontador para que retornasse ao seu desenho. Era um pesadelo em todos os sentidos: fila, gente mal-educada e o lápis sem ponta. Só faltava um poodle encardido mijar na sua perna.

            Reuniu suas últimas forças, girou o pescoço como uma coruja, a procurar alguém que pudesse socorrê-lo com um apontador. Passo a passo registrou algumas imagens em sua mente:

 

1) Um gordo com peitos enormes, usando o visual “sou metaleiro: roupa preta e coturno com ponta de alumínio é o que há”

2) Outro gordo com um telefone celular na mão.

3) Uma menina grávida, de pé, segurando as mãos de outras duas crianças, enquanto o provável companheiro cochilava em uma cadeira.

4) Um idoso comendo um milho cozido (onde conseguira um milho cozido naquelas circunstâncias?)

5) O penúltimo guichê: “CERTIDÕES: nascimento / casamento / óbito”. Sobre o balcão havia, entre outras coisas, um apontador verde, dos mais baratos que se vendem por aí.

 

            Olhando mais acima, deparou-se com uma imagem que lhe fora como uma grande rajada de vento que afasta a ardida fumaça do mato queimando. Trajando a camiseta amarela do uniforme do cartório, ela olhava fixamente para o monitor, enquanto habilmente digitava documentos de amores, frutos de amores, ou de amores evanescentes. O perfil à mostra era o direito, exibindo seus longos, negros e lisos cabelos, tentando escapar de uma presilha lilás, vulgarmente chamada de piranha. Walffrido fixou os olhos tentando identificar o brinco, era um coração com uma pedra no meio. Enquanto ela digitava, o coração agitava-se, em movimentos randômicos, expressivamente.

 

III

 

            Era magra. Braços finos de uma pele clara decorrente do passar o dia todo no cartório. Walffrido Ricarte detestava o senso comum de que o bronzeado é bonito. Detestava pessoas douradas. “Querem ser frangos, para atestar que estavam de férias”, pensava ele. Em algum momento da divagação do desenhista, ela levantou-se para buscar documentos em um móvel repleto de gavetas. Parecia concebida para ele. Alguma existência superior arquitetou e deu forma aos seus mais profundos anseios por beleza, e ela estava ali, agachada, quase a mergulhar na mais baixa gaveta. Não possuía atributos extraordinários ou excessivos. Suas formas eram devidamente proporcionais, desde o busto aos quadris, cujos detalhes cabem apenas à mente do jovem desenhista.

            Lembrou-se de uma música do Lenine, que dizia “magra, leve e calma, toda ela é bela, tudo nela chama”. Ela se levantou, ele desviou o olhar para a página onde terminaria o desenho da paisagem chuvosa. Chuva que caía sem piedade. Chuva agressiva, como os desejos do mundo. Quando ergueu seus olhos novamente – julgando-se o mais discreto dos homens – a moça estava a olhá-lo, com um leve sorriso no canto esquerdo da boca, algo como um dardo, para um alvo escolhido delicadamente.

 

IV

 

            Naquele instante ficou mais amarelo do que o uniforme que ela usava, quase se mijando de medo. Retribuiu timidamente o sorriso, e fez um gesto de “posso te perguntar uma coisa?” e ela sinalizou que sim. Dirigiu-se ao guichê olhando em seus olhos, que eram verdes.

 

- Posso usar seu apontador?

- Claro que sim, cadê o lápis?

- Aqui.

- Deixa que eu aponto para você.

- Ok.

 

            Aquele lápis alcoviteiro descarado permitiu que suas mãos se tocassem, revelando que ambas estavam geladas. “Deve ser por causa da central de ar”, mentiram ambos a si mesmos no momento.

 

- Aqui.

- Obrigado.

- Como é seu nome?

- Walffrido.

- Prazer, eu sou Cláudia. As pessoas te chamam de Wal?

- Não, não, só de Walffrido mesmo. Também sou chamado pelo sobrenome, Ricarte. Wal só a minha mãe usava, e eu pedi que parasse, pois todos riam de mim, dizendo que era Wal de Walesca ou de Waléria.

 

            Cláudia, que era uma moça extremamente recatada, exibiu um leve sorriso enquanto se acabava de rir, por dentro, da desgraça de um homem ser chamado por um apelido feminino e continuou a conversa.

 

- Posso perguntar por que tanta pressa de apontar esse lápis?

- É que eu desenho, aí alguém pisou no meu pé, e acabei pondo pressão demais no lápis e a ponta quebrou.

- Posso ver o que você estava desenhando?

- Se não for atrapalhar seu trabalho.

 

            Não acreditava que o modelo de todas as coisas belas que imaginava pedira para ver um desenho seu. Poderia dançar, mas soaria esquizofrênico. Preferiu os calafrios da imensa felicidade, que arrepiaram até os cabelos de seu nariz.

            Enquanto ela olhava o desenho, o coração agitava-se. Lembrou-se de como as chuvas da infância sempre pareciam cinzentas, com uma leve melancolia e algo de um frio na barriga.

 

- Nossa, que lindo! Você desenha pessoas também? Você me desenharia?

 

            A atendente do guichê ao lado que até calada já estava errada interrompe a conversa:

 

- Desenhar é coisa de menino. Tira a foto no celular e passa por blutúti. É mais rápido, e ainda dá pra usar o fotochópe pra ajeitar as feiúras.

 

            Foi completamente ignorada. Tanto por Cláudia, quanto por Walffrido, que mantinha o sedimentado posicionamento de que as lentes das câmeras jamais poderão se igualar ao olho humano, pois a elas falta a capacidade de interpretar o objeto representado.

 

- Celular não une o olho e o coração. No máximo, capta, com baixa resolução, uma imagem sem sentimentos, sem intencionalidade, sem interpretação. Nem imagem é. É apenas um conjunto de pixels tentando ser imagem.

 

            Cláudia tropeçou em sua própria respiração, naquele momento, levando a mão ao peito, como se, de propósito, sincopasse o ritmo cardíaco. Pressionou tanto o peito que o pingente de bailarina fez uma marca vermelha, que ela não veria até o momento de chegar em casa, à noite, e se olhar no espelho, nua da cintura para cima.

 

- ...

 

            Sua colega indignara-se, pois seu celular fora comprado por suados duzentos reais, só por causa da câmera e do dispositivo Bluetooth.

 

- Fala isso porque é pobre. Se pudesse comprar um desses aqui não precisaria ficar apontando lápis. Tá atrapalhando meu trabalho aqui.

 

            Cláudia olhou bem fundo nos olhos de Walffrido, e apenas com aquele olhar, conseguiu dizer-lhe o intraduzível. Mas ele entendeu.

 

- Então, obrigado pelo favor.

- De nada.

 

            Retornou ao seu lugar para concluir o desenho da chuva.

            Cláudia divertia-se com nomes estranhos de nubentes. Já não conseguia disfarçar seu sorriso. O rosto cansado de antes dera lugar a uma expressão pueril, de uma moleca que acabara de ganhar um jambo. “Meu nome só estará nesta tela se eu me casar ou se morrer. Deus me livre de morrer agora. E de casar também. Só tem homem ruim nesta cidade. Não sonho tão alto assim. Só quero me sentir amada.”

            Avidamente concluía seu desenho anterior, quando se pôs a pensar, o solitário rapaz.

            Cabe uma rápida advertência: não era feio. Era solitário porque não gostava da superficialidade das pessoas.

            “Tirar a foto em um celular... como se já não me bastasse ter que cruzar todos os dias com essas cigarras tecnológicas tocando tecnotudo... Tecnossamba, tecnovalsa, tecnobrega, tecnomelody, tecnoharmony, tecnovouencheratuapaciência... só consigo ouvir cigarras, não discirno as músicas. É torturante. Só perde pros meninos de roupinha colorida apertadinha e cabelo caindo na cara. Mais torturante ainda.”

            Pensavam ambos, cada um em sua ocupação, enquanto que, simultaneamente, escreveram: ele escreveu, abaixo da assinatura que deu ao seu desenho, o nome Cláudia; ela escreveu Walffrido com uma caneta de tinta muito forte em um papel em branco que estava sobre a mesa, e desenhou uma flor em forma de interrogação. Ambos sorriram.

            Já não se sabia quanto tempo havia passado. Ninguém queria olhar para relógios.

            O monitor avisava a Walffrido que a próxima senha seria a sua, então decidiu voltar à Cláudia, e pedir seu endereço de e-mail, porque telefone sairia muito clichê.

            No entanto, traiu-se pelo senso comum:

 

- Mas se quiser pôr o telefone também...

 

            Ela anotou não apenas um, mas dois endereços de e-mail, e o número de seu telefone celular. Walffrido guardou o pedaço de papel como guardaria uma nota de cem reais: com alegria, mas com muita cautela para nele mexer, para que não estragasse.

            Finalmente chegou sua vez, e realizou todos os procedimentos que deveria realizar. A chuva parara de cair. Sem mais, abriu a porta para ir embora, mas ainda olhou o interior do cartório refletido naquele vidro temperado, e Cláudia olhava para ele. Pensou em voltar, mas decidiu seguir, pois detestava lugares cheios de gente. No mais, precisava criar. Não mais sobre a chuva, mas sobre Cláudias e seus brincos de coração.

 

V

            Já do outro lado da rua, ouviu:

 

- Espera! Você esqueceu o envelope!

 

            Era Cláudia.

            Novamente Walffrido lembrou-se de Lenina:

 

“Segue / Enquanto suspiro / Toda /Cor de tempero / Cheira / Um cheiro tão raro / Clara / Cura o escuro / Ela / Braços de linha / Dengo / Cheio de manha / Durmo / E peço que venha / Acordo / E sonho que é minha”

 

- Aqui está. Vê se não vai perder por aí. Nem se perder.

- Obrigado. Desculpe te fazer sair do local de trabalho só para me entregar isso (disse descaradamente, fingindo uma carência absurda).

 

            Ela piscou:

 

- Por que você acha que eu sairia do penúltimo guichê para te entregar o envelope esquecido no primeiro?

 

            Mal ela concluiu sua frase foi puxada pela cintura e abraçada fortemente. Todos os poros do seu corpo abraçaram e foram abraçados. As folhas secas da castanheira foram levadas para longe pelo vento que anunciava uma próxima chuva. Ele não a beijou. Ela não o beijou. Todas as células se beijaram, embora lábios não tenham se tocado.

 

- Preciso voltar lá pra dentro.

- ...

- Quando vou te ver de novo? – perguntou a moça, com seus contentes olhos verdes.

- Se você quiser, hoje mesmo.

- Tá bom, eu saio às cinco e meia.

- Ok, vou fazer umas coisas aqui por perto e passo aqui cinco e meia.

- Até logo.

- \o

 

            Quando ela saiu, cinco e meia, ele continuava no mesmo local de antes, a esperá-la, pisando em folhas secas de castanheira, com um papel em branco na mão direita.

 

- Por que esse papel em branco?

- Era eu, antes de ti.

 

            Então ele vira a outra face da página e exibe a ela a silhueta de uma moça muito familiar. Ela sorri, com os três corações inquietos.

            Não sei por quanto vai durar este momento, mas o que há no verso da página que te entreguei me fez vivo, hoje. Poderia dizer mais vivo do que momento em que nasci, mas seria dramático demais, o que não combina comigo, que detesto clichês ou chavões. Simplesmente me sinto mais vivo. Devo dizer isso a ela? De que forma diria sem parecer um completo maluco? Não direi nada. Convidarei-a para comer costela de Adão na lanchonete da rodoviária”

            Então ela, que parecia lhe puxar as palavras do cérebro, pensou:

 

“ Não sei por quanto vai durar este momento, mas te conhecer, hoje, me fez sentir mais viva. Poderia dizer mais viva do que momento em que nasci, mas seria dramático demais, o que não combina comigo, que nunca consegui gritar com ninguém. É como se esses teus olhos vissem dentro de mim. Eu queria sair para lanchar, mas perdi a fome. Perdi a sede também. Só quero sentar em algum lugar contigo e ficar quieta, sorvendo poesia contigo”.

- ...

- ...

            Ele nada conseguia falar. Nem ela. Pegou-a pela mão e saíram caminhando. Ele assobiava “magra, leve e calma, toda ela bela, tudo nela chama”. Ela pensava no frio na barriga de quando via a chuva pela janela.

            Um ciclista passou, dizendo “que casal mais fofinho!”

            E os dois continuaram a caminhar até desaparecer no horizonte, em uma paisagem com poucas árvores e muita fumaça ao fundo. Era época de queimadas na região, e os olhos das pessoas ardiam por causa dessa fumaça.

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