quarta-feira, 30 de junho de 2010

POEIRA, FULIGEM E UM DEDO D’ÁGUA

Chamo-me João Francisco Rosa da Silva. Contarei uma rápida história, sobre poeira, fuligem, poeira de novo e fuligem de novo. E sobre falta d’água.

Antes, um rápido esclarecimento: devo meu vocabulário ao meu pai, o senhor cujo nome carrego. Não estudei mais porque o coração me destinou ao fogo de palha de um casamento infeliz e efêmero. Quando dei por mim, era pedreiro. E dos bons, se estudasse engenharia…

Estava eu voltando para a minha humilde residência, por volta de meio-dia e vinte. Calor desgraçado. Para chegar em casa, preciso atravessar uma ponte. Na verdade, todo mundo precisa passar por ela.

Quando digo todo mundo não exagero. Caminhões, ônibus, caminhonetes, táxis de cooperativas, táxis de lotação, carros de passeio, centenas de motocicletas, algumas carroças, e, finalmente, os ciclistas, categoria na qual me enquadro.

Na minha cidade não há ciclovia. Se houvesse, mudaria de nome para motovia. É incrível a capacidade dos motoqueiros de passar por qualquer espaço que lhes for dado. Outro dia, sem exagero, vi um motoqueiro se equilibrar por cima do meio fio por uns cinqüenta metros só para ultrapassar um outro motoqueiro, que já se equilibrava no acostamento para ultrapassar outro motoqueiro, que ultrapassava, por sua vez, um carro, pela direita. Sim, tudo isso pela direita.

Como não há ciclovia, tenho de me aventurar por entre tudo o que fora citado acima, com a minha monark barra forte, comprada por vinte e cinco reais de um desconhecido que queria beber cachaça e estava liso. Calor de fritar carne no chão. Nunca fui lá, mas dizem que só perde para Teresina. Caixa de ferramentas na garupa, trânsito parado, exceto pelas motos. Esperei que passassem, e segui em frente, rumo ao feijão com arroz e bife, que aprontei antes de sair, cedo.

Consegui chegar no semáforo, que mudava de amarelo para vermelho. Posicionei-me à frente de uma caminhonete, de onde emanava uma música sertaneja muito bacana. Senti-me no lugar do motorista, curtindo a música no ar-condicionado do veículo. Sinal verde e buzina: “sai da frente, carniça!”. Era o motorista de há pouco. Não pude deixar de cumprir a ordem, ou o cidadão passaria por cima.

Cheguei à ponte. “Agora é a minha vez”, pensei. “Os carros todos parados, vou passar do lado dele e dar um dedo”. Passei. Dei o dedo, mas ele nem viu, pois falava ao celular. Me lasquei.

Finalmente cruzei a ponte e percorri o longo caminho restante até a minha casa. Quando olhei para os meus pés, estavam cor de poeira. Não soube discernir qual era a cor da poeira, nem me esforcei para isso, pois estava com fome. A única coisa que me incomodava mais do que a fome naquele momento eram os pés sujos. Lavei-os rapidamente com água de um pequeno balde marrom.

Entrei em casa. Fui ao fogão. Vi que todas as panelas estavam destampadas, pois, na pressa de sair, esqueci deste detalhe. Com uma colher, tirei a fuligem de cima do arroz e do feijão. Mas os bifes, estes teriam de ser lavados. O chão da minúscula cozinha estava cheio de marcas de havaiana, e a fome apertava mais e mais. Levei a frigideira e uma vasilha limpa para o jirau lá fora, e abri a torneira. Saiu ar. Esperei até que o ar saísse e a água desse o ar de sua graça. Nenhuma gota. Já passava de uma hora da tarde, deveria estar no serviço às duas. O jeito era lavar os bifes com água gelada mesmo.

Corri à geladeira como se ela fosse a minha mãe. Quando a abri, madrasta. Nada de água. Cinco garrafas pet vazias e uma com um dedinho só do líquido precioso. O que eu faria com um dedo de água? Uma lama no bife? Me lasquei.

Fui comer com a televisão ligada. Arroz e feijão frios, sem bife, com um dedinho de água para desentalar. Na propaganda, o imperativo: pague a sua conta de água antes do vencimento, e ganhe descontos especiais. Precisamos manter a qualidade da água que você aproveita. Nem almocei mais. Antes entrasse em casa com os pés sujos.

Me lasquei de novo.

Um comentário:

Vico disse...

Patrick, adorei o conto! É a primeira vez que acesso o seu blog e prometo tornar-me um "habitué". Não é todo dia que encontramos qualidade na net, né?
Um grande abraço.
Vilmar Ferreira