domingo, 6 de junho de 2010

Pedaços de telha.

Não podia ordenar aos curiós que cantassem, mesmo os engaiolados. Àquela altura só o ser órfão de amor importava, e, mais do que isso, a vontade de se saber existindo, mesmo que inacabadamente. Já era dia lá fora? Havia sol ou chovia? Vento em algum pé de cidreira? Poeira nos olhos dos homens que andam de motocicleta sem capacete ou óculos de proteção? Sua cabeça doía só de pensar nisso. Ainda assim sorriu a si mesmo no quarto vazio. Toca o telefone.

- Vamos sair? Qualquer lugar serve, só por sair mesmo, até a beira do rio, pra jogar pedaços de telha e ver quantas vezes eles pulam na água!

- Liga daqui a dez minutos, que ainda estou acordando, tá?

- Tá.

Como alguém conseguia conceber a manhã de domingo como tempo para jogar pedaços de telha na água? “Se não fosse meu amigo, mandava à merda”. Mas lá no fundo concordava com seu interlocutor. Ficar em casa não resolveria nada. Falta de amor não se cura com solidão. Tentou erguer-se pela esquerda, não pôde. Tentou erguer-se pela direita, não pôde. Parecia colado na cama, com a goma de seus devaneios. Enfim, imaginou-se a voar, então pousou. Toca o telefone de novo. Precisava mudar aquele ringtone, que parecia o corvo do umbral, a dizer “hoje eu quero sair só, hoje eu quero sair só”, com a voz do Lenine.

- Entao, vamos? Passo aí pra te buscar.

- Eu disse dez minutos.

- Já se passaram quinze!

- ... (aquela altura tomara consciência de que levou mais de dez minutos apenas para levantar da cama, mas não se importava com isso, afinal não podia mandar em nada, nem nos curiós cruelmente encarcerados).

- Pode vir.

- Ok. Chego aí em meia hora.

Visualizou uma lista do que precisaria fazer antes de sua carona chegar: escovar os dentes, tomar banho, passar a roupa que usaria, comer algo. Riscou o “comer algo”, pois faria isso na rua. Buzina de carro.

- Anda logo, rapaz, parece que morreu e não sabe!

- ... (naquele momento quase o mandou ir à merda, e continuava sem entender como alguém estava tão animado em uma manhã de domingo).

- Então, para onde iremos?

- Contanto que você pare no meio do caminho para esse lugar que não sabemos qual é, a fim de que eu quebrar o meu jejum...

- Não tomaste café ainda?

- Tomei, tomei. Por isso quero tomar de novo. (se estivesse numa sala de chat, usaria o emoticon ¬¬ decididamente).

- Tá, já sei onde pararemos. Mas, para onde iremos depois?

- ...

Definitivamente, falta de amor não se cura com esse tipo de pergunta. Solidão muito menos. Até a falta d’água de mais de três dias que o obrigou a tomar banho de cuia no quintal era menos desagradável do que sugerir um lugar para ir em um dia no qual não gostaria de ir a lugar algum. O carro pára. O lugar não parecia muito asseado. Malemolentemente, uma senhora, que já não gozava de seus melhores anos e aparência, bate o guardanapo encardido em uma mesa de plástico para afastas as moscas.

- Tem tapioca de dois real e de três.

- O que vem na de três?

- Tudo o que vem na de dois, mais leite moça.

- Custa um real a mais para pôr um pouco de leite condensado na tapioca?, bradou indignadamente, por saber que o leite condensado era de alguma marca genérica e de baixa qualidade.

- Se quiser. Se não quiser, leva a de dois.

Quis ir embora, mas seu (feliz) amigo, tomou a frente: “vê aí duas de dois e dois cafés”.

- Quero café não.

- Tá, duas de dois e um café.

O amigo feliz se chamava Max. Danilo era o nome do outro. Danilo possuía um grande poder de observação, e notou que a senhora da tapioca não usava um lenço, mas uma fralda na cabeça. Pendurada na saia cor-de-rosa encontrava-se outra fralda, que era usada para limpar as mãos. “Limpar ou sujar?”, disse, em voz alta, Danilo, inevitavelmente.

Ao cabo de três minutos de conversa sobre nada, ela traz as tapiocas e o café de Max. Comem rapidamente. Max paga e vão embora. Danilo não consegue tirar as fraldas da cabeça. O carro ia com as janelas abertas, e ele divagava sobre sua sensação de impotência diante da falta de amor. Se bem que se ordenasse a alguém que o amasse, já não seria amor, seria servidão. O amor tem algo mais. Tem algo de um campo de batalha. Esconder e mostrar-se, puxar o cabo de guerra, avançar e recuar, sobretudo recuar nas horas certas, para avançar eficientemente. Sentia-se não como um morto, mas um ferido das batalhas do amor.

- Chegamos. Quanta gente!

- É por causa da falta d’água, o povo vem lavar roupa, louça e tomar banho no rio.

- Junto com os cachorros?

- Sim.

- Vamos embora, que isso acabou com o meu humor. Lavar louças na mesma água em que banham os cães. Olha ali, tem uma senhora lavando fraldas, cara!

- Já que estamos aqui, por que não fotografamos isso?

Max pega a câmera no carro, imerso em uma quantidade inacreditável de repulsa pela cena que presenciara. Era passional, não tomava jeito. Se estava feliz ou triste ou irritado, qualquer tolo o poderia notar. Não possuía um estômago forte, então passou a câmera para Danilo, que avidamente fotografava o que lhe chamava a atenção.

- Lembra de quando éramos pequenos e jogávamos cacos de telha na água? Eu fantasiava que meu caco poderia saltar tantas vezes que chegaria à outra margem do rio. Eu cresci, o rio diminuiu, e as pessoas lavam cães, fraldas e louças com a mesma água. E as minhas fantasias acabaram.

- Nunca deixe de fantasiar, meu caro. Quando sairmos daqui e as imagens desaparecerem de sua mente, você voltará a pensar em cacos de telha e sonhos de menino. Vamos embora.

- Como você consegue ser tão frio?

- A falta de amor me fez assim. Eu não mando na companhia de saneamento. Tive de tomar banho de cuia hoje.

- Ok, vamos embora.

Pelo retrovisor, Max e a realidade se distanciavam, enquanto Danilo revia as fotos que acabara de tirar. Há cinco dias não havia água nos canos.

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