domingo, 7 de novembro de 2010

TATÁ

            O poeta estava, de certa forma, aliviado. Havia tirado o gesso naquela quarta-feira. Jogou-se embaixo do chuveiro demoradamente, e não conseguia pensar em nada além da água que interrompia os dois penosos meses de aridez em seu corpo debilitado. Perdeu a noção do tempo. A única música que ouvia era a da água. Só ouvia a água.

            Dolorosa e vagarosamente, mudava de pele tal uma cobra branca, na má consciência de que a imortalidade não é privilégio seu. Se fosse um gato, restar-lhe-iam apenas mais cinco vidas, e a prova disto eram os restos de seu antigo eu a descerem pelo infinito do ralo de plástico encardido. Estava retomando a posse de seu corpo.

            Pegou carona com um amigo e foi até a clínica de fisioterapia, a fim de dar início a seu processo de reabilitação. Passou pela avaliação médica sem mais problemas. Tudo objetivo, como deveria ser. No dia seguinte começariam as sessões fisioterápicas, mais especificamente no fim da tarde. Estava definitivamente retomando a posse de seu corpo.

            Foi de táxi, para não perder a hora. Recepção calorosa da simpática secretária. Sentou-se na cadeira verde, apertando sua bolinha azul, ora com a mão direita, ora com a esquerda.

 

- Foi moto?

- Não, uma caminhonete.

- Bateram na sua caminhonete?

- Não, uma caminhonete bateu em mim.

- Uma caminhonete bateu na sua caminhonete?

- Não, a caminhonete bateu na minha moto, que era, naquele momento, pilotada por mim.

- Ah, então foi moto.

- Não, senhora, foi uma caminhonete. O condutor avançou o sinal e me bateu.

- Mas de qualquer maneira foi moto.

- Não, minha senhora, foi uma caminhonete.

- Quebrou muito?

- Não. Só o punho direito, o cotovelo esquerdo e o dedão do pé esquerdo.

- Doeu?

- Não, senhora, não doeu. Eu, na verdade, quero repetir tudo igualzinho como naquele dia, de tanto que eu gostei.

- Hã?

- Nada não, senhora.

 

            Fingiu atender o celular a fim de evitar o prolongamento da conversa com a senhora, que logo entrou para sua fisioterapia no joelho. Alívio imediato, a paz reinou na recepção. A secretária jogava Zuma Deluxe no computador, na mais absoluta concentração, enquanto o poeta imaginava sobre o que escreveria ao final daquele dia. Em seguida entram uma mãe e seu filhinho que aparentava ter cinco anos, para pedir informações no balcão. A secretária pede que a mãe espere um pouco. A mãe poderia sentar em qualquer uma das nove cadeiras distribuídas em três filas, mas sentou ao lado do poeta.

 

- Foi moto?

- Não, uma caminhonete.

- Nossa, e sua caminhonete tinha seguro?

- Eu não tenho uma caminhonete.

- Mas não foi caminhonete?

- Foi.

- Uma caminhonete bateu no seu carro?

- Não, a caminhonete bateu na minha moto, que, no momento, era pilotada por mim.

- Ah, então foi moto.

- Não, senhora, não foi moto, foi a caminhonete que avançou o sinal e me jogou a alguns metros de distância.

- Quebrou muito?

- Não. Apenas os dois braços e o dedão do pé esquerdo.

- Doeu?

- Não, não doeu. Eu até gostei. Tem uma caminhonete disponível pra bater em mim?

- Hã?

- Nada não.

 

            “Sr. Poeta, é a sua vez, siga-me por favor”. Era uma voz doce, como a voz da Corina do tele-táxi. Ou a voz da Maria, do tele-táxi. Ou da Ruana, também do tele-táxi. Estava mais para a voz da Corina mesmo.

 

- O Sr. pode deixar suas coisas aqui e deitar naquela cama ali.

- Obrigado.

- Foi moto?

- Não, foi uma caminhonete.

- Quase bateram na minha caminhonete também, essa semana. (essa era a fala de um paciente deitado em uma cama lá no fundo da sala)

- Mas eu não tenho uma caminhonete. Uma caminhonete bateu em mim, e eu estava de moto.

- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAH, ENTÃO FOI MOOOTOOOO. (os pacientes e as auxiliares de fisioterapia pareciam haver ensaiado o coro trágico).

- Não foi moto, foi uma caminhonete.

 

            A auxiliar de fisioterapia ostentava um sorriso largo. Parecia ter fugido da imagem estereotipada da mulher. Se ria, ria de verdade, um riso livre, beirando o desdém. Ela, então, aproximou-se do poeta e disse: “hoje vou te fazer gemer, com sensações jamais experimentadas em sua vida”. O poeta empolgou-se com aquela fala.

 

- Antes de começarmos, posso saber seu nome? Você daria uma ótima personagem para um texto meu.

- Tamiris.

- Como se escreve?

- É Tamiris, sem frescura. T-A-M-I-R-I-S. Mas prefiro que me chame de Tatá.

- Tá bom, Tatá. (achou tão musical dizer “tá bom, Tatá, que ficou repetindo em sua mente enquanto a moça arrumava os apetrechos necessários para a fisioterapia).

 

            Ela arrumou seu jaleco sobre a blusa de alcinha, que revelava uma pele morena ao estilo Jorge Amado, e pôs a franja de seus cabelos lisos detrás da orelha esquerda, deixando o lado direito levemente caído sobre o rosto. “Vamos começar, quando doer você me avisa”. “Tudo bem”, respondeu o poeta, demonstrando uma imensa satisfação por estar ali.

            Mas o poeta, que tudo observa, notou que todas as pessoas presentes naquela sala por uns instantes abandonaram suas conversas e se focaram nele e na morena cor de um verão constante. Logo entenderia o porquê.

            Ela alongou seu punho direito fraturado, e a dor foi absurda. Pediu para que ela parasse e ela não parou. “Outro dia uma criança me mordeu o braço todo, mas não larguei. Eu nunca largo.” Passou para o punho esquerdo que, embora não fraturado, esteve imobilizado pelo mesmo gesso do cotovelo. Dor tão intensa quanto. E o silêncio perdurava no ambiente.

            Ela então se voltou para o cotovelo. O poeta não sabia expressar se aquela dor era uma dor de morrer ou de nascer. Agarrou-se no braço da morena.

 

- Me larga, Tatá. Tá doendo. Ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai...

- Só largo se você me largar.

- Então solta primeiro. Solta, Tatá, tá doendo demais... (o poeta já estava suando frio)

- Me solta que eu te solto.

- Você não vai soltar.

- Solta que você vai ver.

 

            O poeta se sentiu frouxo. Se tivesse comido demais ou bebido muita água naquele dia, esvaziaria o seu ser, de uma forma ou de outra. Soltou o braço da morena, que, logo em seguida, soltou o seu.

 

- Não disse que te faria gemer?

- D:

- Agora vamos repetir e você tá liberado.

 

            AVISO: NESTE MOMENTO A HISTÓRIA POSSUI UM LAPSO, DEVIDO AO DESMAIO DO POETA DURANTE A REPETIÇÃO DA SESSÃO FISIOTERÁPICA. O MESMO ACORDOU NA HORA DE LIGAR PARA RUANA E CHAMAR UM TÁXI.

 

            Despediu-se de todos, incluindo de Tatá-doendo (passou a chamá-la assim depois deste dia). Entrou no táxi e pediu para o motorista ajudá-lo com o cinto. Ironicamente, apesar de andar muito de táxi naqueles dias, era a primeira vez que entrava naquele carro com aquele taxista.

 

- Foi moto, foi?

- …

Um comentário:

Unknown disse...

Adorei!! tatá-doendo de tanto rir... muito bom. Vc é realmente um ótimo contista. Bj